domingo, fevereiro 12, 2012

Para além do bem e do mal...


Em Os Irmão Karamazóvi[1] o personagem de Dostoiévski afirma que se o ser humano não tivesse inventado Deus não haveria civilização. Ele retoma a frase de “um velho pecador do século XVIII”: “Si Dieu n’existait pas, il froudait l’inventer” (“Se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo”). Ivã Fiódorovitch, em diálogo com o irmão caçula, Aliócha, retoma o dito voltaireano e aprofunda o argumento: “E, com efeito, foi o homem quem inventou Deus. E o que é espantoso não é que Deus exista realmente, mas que esta idéia tenha vindo ao espírito de um animal feroz e mau como o homem, tão santa, comovente e sábia é ela, tanta honra faz homem. Quanto a mim, renunciei desde muito tempo a perguntar a mim mesmo se foi Deus quem criou o homem, ou o homem que criou Deus” (p.176).
A crença no humano, que transparece na fala de Ivã, é algo simplesmente admirável. Fez-me lembrar uma conversa recente com o meu amigo Walterego sobre o preconceito e o racismo. Eu, influenciado pela leitura de Os jacobinos negros[2], fiz um breve comentário sobre a minha dificuldade em compreender uma época na qual o ser humano foi escravizado e sofreu as mais bárbaras crueldades apenas e somente porque seu organismo continha mais melanina. No entanto, disse-me o amigo, é admirável do que o humano é capaz de criar para e pelo bem.
Como é possível o humano, um ser propenso ao mal e com a capacidade de cometer atrocidades as mais terríveis e indescritíveis, até mesmo em Nome de Deus, ser capaz de criar uma idéia tão pura e liberta de todo o mal? A resposta dos que pensam em moldes dicotômicos, dos que concebem o mundo maniqueisticamente enquanto a mera contradição entre o bem e o mal, é simples e simplista. A questão é mais complexa, pois se refere à complexidade do ser humano. O mesmo ser humano capaz de praticar o bem pode se revelar, com toda intensidade, a própria encarnação do mal. No mais bondoso do homem, na mais pura e inocente bondade de uma criança, de uma mulher, habita o mal.
Como escreve João Guimarães Rosa: “Tudo é e não é… Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! (…) Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar”.[3] Os eventos históricos estão repletos de exemplos. Os nazistas banalizaram o mal, mas, no entanto, eram cultos, bons pais, boas mães, bons filhos, boas filhas, bons maridos, boas esposas, etc.
Tudo é e não é! Para minimante tentar compreender a natureza humana é preciso ir além do dualismo e maniqueísmo. O desafio é pensar dialeticamente. Aliás, também há os pretensamente dialéticos que imaginam existir uma essência humana boa, civilizada. Eis que o humanismo ingênuo anda de mãos dadas com um certo pensamento que se considera materialista e dialético. Ora, o homem civilizado abriga em si o bárbaro – os próprios conceitos de civilização e barbárie precisam ser rediscutidos, pois que bárbaro é sempre o outro e, invariavelmente, este é um argumento para a opressão de povos tidos como inferiores. As luzes da razão iluminista podem brilhar tanto a ponto de cegar e não nos deixar ver a barbárie perpetrada pela razão.
A natureza humana também incorpora o mal. Como bem observou o florentino, no século XVI, tolos os que agem considerando apenas a propensão humana à bondade, ao bem. Eles se surpreenderão com a capacidade do humano em fazer o mal. Como afirma o personagem de Dostoiévski:
− Penso que se o diabo não existe e foi por conseguinte criado pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem (p.176).
− Cada homem oculta em si um demônio… (p.181).
O ser humano incorpora em si Deus e o Demônio, o bem e o mal. Muitas vezes, na busca do bem, ele adota práticas que devem enrubescer o demo. Por outro lado, nem todas as boas ações produzem o bem, podem até mesmo gerar o oposto. Para Maquiavel, de um ponto de vista político, o que conta mesmo é o resultado alcançado. É nisto que, em última instância, reside o julgamento humano. Pelo menos no que diz respeito às coisas humanas na esfera terrestre. O humano, demasiado humano, como diria Nietzsche, é muito mais complexo do que a vã filosofia do humanismo cândido. Quanto ao sobrenatural, fica a critério da imaginação de cada um…

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domingo, fevereiro 12, 2012

Para além do bem e do mal...


Em Os Irmão Karamazóvi[1] o personagem de Dostoiévski afirma que se o ser humano não tivesse inventado Deus não haveria civilização. Ele retoma a frase de “um velho pecador do século XVIII”: “Si Dieu n’existait pas, il froudait l’inventer” (“Se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo”). Ivã Fiódorovitch, em diálogo com o irmão caçula, Aliócha, retoma o dito voltaireano e aprofunda o argumento: “E, com efeito, foi o homem quem inventou Deus. E o que é espantoso não é que Deus exista realmente, mas que esta idéia tenha vindo ao espírito de um animal feroz e mau como o homem, tão santa, comovente e sábia é ela, tanta honra faz homem. Quanto a mim, renunciei desde muito tempo a perguntar a mim mesmo se foi Deus quem criou o homem, ou o homem que criou Deus” (p.176).
A crença no humano, que transparece na fala de Ivã, é algo simplesmente admirável. Fez-me lembrar uma conversa recente com o meu amigo Walterego sobre o preconceito e o racismo. Eu, influenciado pela leitura de Os jacobinos negros[2], fiz um breve comentário sobre a minha dificuldade em compreender uma época na qual o ser humano foi escravizado e sofreu as mais bárbaras crueldades apenas e somente porque seu organismo continha mais melanina. No entanto, disse-me o amigo, é admirável do que o humano é capaz de criar para e pelo bem.
Como é possível o humano, um ser propenso ao mal e com a capacidade de cometer atrocidades as mais terríveis e indescritíveis, até mesmo em Nome de Deus, ser capaz de criar uma idéia tão pura e liberta de todo o mal? A resposta dos que pensam em moldes dicotômicos, dos que concebem o mundo maniqueisticamente enquanto a mera contradição entre o bem e o mal, é simples e simplista. A questão é mais complexa, pois se refere à complexidade do ser humano. O mesmo ser humano capaz de praticar o bem pode se revelar, com toda intensidade, a própria encarnação do mal. No mais bondoso do homem, na mais pura e inocente bondade de uma criança, de uma mulher, habita o mal.
Como escreve João Guimarães Rosa: “Tudo é e não é… Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! (…) Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar”.[3] Os eventos históricos estão repletos de exemplos. Os nazistas banalizaram o mal, mas, no entanto, eram cultos, bons pais, boas mães, bons filhos, boas filhas, bons maridos, boas esposas, etc.
Tudo é e não é! Para minimante tentar compreender a natureza humana é preciso ir além do dualismo e maniqueísmo. O desafio é pensar dialeticamente. Aliás, também há os pretensamente dialéticos que imaginam existir uma essência humana boa, civilizada. Eis que o humanismo ingênuo anda de mãos dadas com um certo pensamento que se considera materialista e dialético. Ora, o homem civilizado abriga em si o bárbaro – os próprios conceitos de civilização e barbárie precisam ser rediscutidos, pois que bárbaro é sempre o outro e, invariavelmente, este é um argumento para a opressão de povos tidos como inferiores. As luzes da razão iluminista podem brilhar tanto a ponto de cegar e não nos deixar ver a barbárie perpetrada pela razão.
A natureza humana também incorpora o mal. Como bem observou o florentino, no século XVI, tolos os que agem considerando apenas a propensão humana à bondade, ao bem. Eles se surpreenderão com a capacidade do humano em fazer o mal. Como afirma o personagem de Dostoiévski:
− Penso que se o diabo não existe e foi por conseguinte criado pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem (p.176).
− Cada homem oculta em si um demônio… (p.181).
O ser humano incorpora em si Deus e o Demônio, o bem e o mal. Muitas vezes, na busca do bem, ele adota práticas que devem enrubescer o demo. Por outro lado, nem todas as boas ações produzem o bem, podem até mesmo gerar o oposto. Para Maquiavel, de um ponto de vista político, o que conta mesmo é o resultado alcançado. É nisto que, em última instância, reside o julgamento humano. Pelo menos no que diz respeito às coisas humanas na esfera terrestre. O humano, demasiado humano, como diria Nietzsche, é muito mais complexo do que a vã filosofia do humanismo cândido. Quanto ao sobrenatural, fica a critério da imaginação de cada um…

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