sexta-feira, novembro 26, 2010

Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime « CartaCapital

Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime « CartaCapital

Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime

O leitor José Cláudio Souza Alves, sociólogo e pró-reitor de Extensão da UFRJ, contesta as avaliações que predominam sobre a onda de violência no Rio.

Nós que sabemos que o “inimigo é outro”, na expressão padilhesca, não podemos acreditar na farsa que a mídia e a estrutura de poder dominante no Rio querem nos empurrar.

Achar que as várias operações criminosas que vem se abatendo sobre a Região Metropolitana nos últimos dias, fazem parte de uma guerra entre o bem, representado pelas forças publicas de segurança, e o mal, personificado pelos traficantes, é ignorar que nem mesmo a ficção do Tropa de Elite 2 consegue sustentar tal versão.

O processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos 5 anos.

De um lado Milícias, aliadas a uma das facções criminosas, do outro a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia.

Exemplifico. Em Vigário Geral a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há 4 anos, o mesmo processo se deu. Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas favelas para a facção criminosa hegemônica.

Processos semelhantes a estes foram ocorrendo em várias favelas. Sabemos que as milícias não interromperam o tráfico de drogas, apenas o incluíram na listas dos seus negócios juntamente com gato net, transporte clandestino, distribuição de terras, venda de bujões de gás, venda de voto e venda de “segurança”.

Sabemos igualmente que as UPPs não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos. O tráfico passa a ser operado por outros grupos: milicianos, facção hegemônica ou mesmo a facção que agora tenta impedir sua derrocada, dependendo dos acordos.

Estes acordos passam por miríades de variáveis: grupos políticos hegemônicos na comunidade, acordos com associações de moradores, voto, montante de dinheiro destinado ao aparado que ocupa militarmente, etc.

Assim, ao invés de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Sadan Husein, e depois, viu a farsa da inexistência de nenhum dos motivos que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo?

Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As ações ocorrem no eixo ferroviário Central do Brasil e Leopoldina, expressão da compressão de uma das facções criminosas para fora da Zona Sul, que vem sendo saneada, ao menos na imagem, para as Olimpíadas.

Justificar massacres, como o de 2007, nas vésperas dos Jogos Pan Americanos, no complexo do Alemão, no qual ficou comprovada, pelo laudo da equipe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a existência de várias execuções sumárias é apenas uma cortina de fumaça que nos faz sustentar uma guerra ao terror em nome de um terror maior ainda, porque oculto e hegemônico.

Ônibus e carros queimados, com pouquíssimas vítimas, são expressões simbólicas do desagrado da facção que perde sua hegemonia buscando um novo acordo, que permita sua sobrevivência, afinal, eles não querem destruir a relação com o mercado que o sustenta.

A farsa da operação de guerra e seus inevitáveis mortos, muitos dos quais sem qualquer envolvimento com os blocos que disputam a hegemonia do crime no tabuleiro geopolítico do Grande Rio, serve apenas para nos fazer acreditar que ausência de conflitos é igual à paz e ausência de crime, sem perceber que a hegemonização do crime pela aliança de grupos criminosos, muitos diretamente envolvidos com o aparato policial, como a CPI das Milícias provou, perpetua nossa eterna desgraça: a de acreditar que o mal são os outros.

Deixamos de fazer assim as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas que permanecem operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas da execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos esquecemos que sua única finalidade é a hegemonia do mercado do crime no Rio de Janeiro?

Mas não se preocupem, quando restar o Iraque arrasado sempre surgirá o mercado financeiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade.

Sempre sobrará a massa arrebanhada pela lógica da guerra ao terror, reduzida a baixos níveis de escolaridade e de renda que, somadas à classe média em desespero, elegerão seus algozes e o aplaudirão no desfile de 7 de setembro, quando o caveirão e o Bope passarem.

* José Cláudio Souza Alves e sociólogo, Pró-reitor de Extensão da UFRRJ e autor do livro: Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Militares espionaram esquerda na década de 90


Militares espionaram esquerda na década de 90
 
Documentos confidenciais do Exército, Marinha e Aeronáutica localizados por Caros Amigos revelam que a espionagem política das Forças Armadas se manteve no período democrático, após o fim da ditadura militar. Aeronáutica afirma que faz isso até hoje
 
Por Lúcia Rodrigues
 
O DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), o centro de tortura mais temido pelos ativistas de esquerda no final dos anos 60 e na década de 70, pode até ter deixado de existir, mas os serviços de inteligência do Exército, da Marinha, Aeronáutica e das polícias Civil, Militar e Federal não foram extintos com a queda da ditadura.
Apesar de os arquivos da ditadura militar ainda não terem sido abertos, documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que as Forças Armadas continuaram agindo de maneira integrada na investigação da esquerda nos anos 90. Partidos políticos, movimentos sociais e até mesmo ativistas estrangeiros estiveram na mira dos agentes da repressão.
A reportagem da revista encontrou documentos  inéditos no meio de quase 20 mil documentos distribuídos em 454 pastas que repousam empilhadas nas prateleiras de aço do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Os relatórios da repressão estavam junto com os demais documentos do arquivo secreto da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo, órgão de inteligência que substituiu o antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no monitoramento político no período pós-redemocratização.
A documentação encontrada revela que além do monitoramento, havia também a troca de informações entre as três Forças Armadas e as polícias Civil, Militar e Federal. Esse compartilhamento de informações entre as Forças Armadas e os órgãos policiais foi o que possibilitou o encontro desses documentos confidenciais e que estavam sob a guarda do setor de espionagem da Polícia Civil de São Paulo.  Em 1999 veio à tona que o órgão que sucedeu o Dops mantinha o monitoramento político. O material foi repassado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, mas só foi disponibilizado para a consulta pública em fevereiro deste ano. (Confira a reprodução da primeira página de alguns dos documentos secretos encontrados pela reportagem da Caros Amigos em www.carosamigos.com.br).
Apesar de conter elementos cruciais que revelam o modo de agir do setor de espionagem militar no monitoramento à esquerda brasileira e internacional, a documentação é apenas uma pontinha no imenso iceberg que poderá ser revelado quando os arquivos da repressão forem de fato abertos. Nem tudo foi repassado. É possível verificar hiatos temporais significativos no acervo da espionagem do pós-Dops.
 
Sindicalismo
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central sindical do país, foi investigada pelo Exército, pela Marinha e Aeronáutica nos anos 90. Relatórios confidências das três Forças Armadas revelam a preocupação dos militares com a atuação da CUT.
O informe do Exército 247/91, de 26 de setembro de 1991, relata a decisão da Central de disputar a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), tomada durante o 4º congresso da entidade. “Essa decisão coloca em jogo a luta pela liderança de três mil sindicatos e vinte e duas federações da categoria”, alerta o agente, que aproveita para informar que durante o congresso “os trabalhadores rurais realizaram um ato de protesto contra a violência no campo e a concentração de terras no Brasil.”
O relato evidencia um claro viés ideológico na investigação. O responsável pelo texto sobre a CUT utiliza aspas quando se refere ao golpe militar. “AVELINO GANZER, membro da Executiva Nacional da CUT e ex-presidente do Sindicato Rural (sic) de Santarém/PA, lembrou as últimas estatísticas das mortes no campo. Destacou que do “golpe militar” até hoje foram registradas 1.630 mortes em conflito por terra e, dos 24 processos concluídos, apenas três mandantes foram condenados.” O relatório traz ainda parte do discurso de Ganzer. “Dramaticamente, nos últimos cinco anos, 53 dirigentes foram mortos em aproximadamente 687 conflitos, finalizou”, ressalta o araponga.
O documento informa que o relatório deve ser repassado para a Comissão Naval, o IV Comar (Comando Aéreo Regional), a Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo. No informe consta ainda que essas informações partiram do 4º BIB (Batalhão de Infantaria Blindado) do Exército. A difusão anterior também é informada. Foi feita pelo Comando Militar do Sudeste, órgão que substituiu, no período democrático, o II Exército ao qual estava subordinado o DOI-Codi
Já a Marinha em seu informe 0130/20/1991, de 25 de setembro de 1991, discorre sobre o Suplemento nº 28 do Departamento de Estudos Socioeconômicos e Políticos (Desep), da CUT. “O SUPLEMENTO, que tem o apoio da CUT Estadual de São Paulo, reúne textos e análises sobre a conjuntura e as tendências do movimento sindical, tem como objetivo principal a elaboração de análises, estudos e pesquisas para subsidiar a atuação da CUT e para estimular o debate e a crítica sobre a evolução das lutas sindicais”, afirma o texto.
O nome dos membros que compõem a Direção Executiva do Desep, sua coordenação e equipe constam desse informe. À época o Desep era chefiado pelo metalúrgico Oswaldo Bargas, que viria a ocupar o cargo de secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego no primeiro mandato do presidente Lula.
A força naval anexa às informações cópia do Suplemento, para que seja compartilhada com o Comando do 1º Distrito Naval, localizado no Rio de Janeiro, Comando Militar do Sudeste (Exército), IV Comar (Aeronáutica), a Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal no Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Policial Civil de São Paulo, Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Essa investigação, segundo informações contidas no relatório, partiu da Comissão Naval em São Paulo.
O comunicado 008/A-2/IV Comar, de 02 de outubro de 1991, da Aeronáutica trata das teses do 6º Congresso Estadual da CUT São Paulo e da programação do Seminário Internacional sobre Socialismo que aconteceria no Instituto Cajamar, instituição ligada ao Partido dos Trabalhadores. “Remetemos para conhecimento as cópias xerox constantes do anexo.” A origem das informações, segundo o relatório, é da Embraer, a empresa da aeronáutica que fabrica aviões. Assim como o Exército e a Marinha, a Aeronáutica  compartilha suas informações. O Comando Militar do Sudeste, a Comissão Naval em São Paulo, o Departamento da Polícia Federal em São Paulo, a Polícia Militar de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social e o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de São Paulo constam como órgãos para os quais o informe deve ser repassado. Envio de publicações sindicais é o título do comunicado encaminhado pela Aeronáutica.
Os relatórios das três Forças Armadas vêm acompanhados, sempre, por carimbos de confidencial e de fichar e arquivar. O da Aeronáutica tem ainda o carimbo do Ministério da Aeronáutica – IV Comar - 2ª Seção, o da Marinha, o da Comissão Naval em São Paulo; o do Exército apresenta carimbo da 2ª Seção da 2ª Divisão do EMG (Estado Maior Geral). Os documentos do Exército e da Aeronáutica vêm acompanhados ainda por outro carimbo, que informa: “o destinatário é o responsável pela manutenção do sigilo deste documento (art. 12 do RSAS – Dec. 79.099 de 05 JAN 77)”.  Trata-se do Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos fixado durante a ditadura militar.
A atuação da Corrente Sindical Classista (CSC), ligada ao PC do B, também foi monitorada pelo Exército no 4º Congresso Nacional da CUT. “A CORRENTE SINDICAL CLASSISTA (CSC) composta por sindicalistas do PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) participou do IV CONGRESSO DA CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (IV CONCUT), realizado em SÃO PAULO/CAPITAL), no período de 04 a 08 SET 91, com uma delegação de cerca de 213 representantes eleitos em quase todos os estados do País.”
O relato de 30 de setembro de 1991 e que teve origem no Comando Militar do Sudeste, informa ainda que o número de delegados da CSC presentes ao congresso permitiu à entidade se tornar a terceira força na entidade, atrás apenas da Articulação e da CUT pela Base.  “Este fato foi muito comemorado por militantes do Partido como altamente positivo considerando que, a CSC foi fundada a menos de 3 anos e filiou-se à CUT há pouco mais de 1 ano (MAR 90)... Conseguiu, ainda, eleger ALOISIO SÉRGIO ROCHA BARROSO, coordenador nacional da CSC e ANTONIO RENILDO SANTANA DE SOUZA para membros da Direção Nacional da CUT.”
Os militares também se preocupavam em produzir relatórios mensais intitulados Panorama Mensal do Movimento Sindical. Esses relatos faziam uma análise das atividades sindicais que se desenvolviam ao longo do mês. Caros Amigos encontrou dois desses relatórios. Eles não estão com o timbre de nenhuma das Forças Armadas, embora sejam redigidos no mesmo tipo de papel (textura, coloração, tamanho). A primeira e a última página aparecem cortadas, uma tinta preta parecida com a de um pincel atômico esconde provavelmente a origem do material.
 
Partidos Políticos
Além da CUT, os documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que o Exército também monitorou o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B).  A Convergência Socialista, organização trotskista que deu origem ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), em 1994, também foi investigada.
No caso do PT, os encontros municipais e zonais do partido e o encontro de seus vereadores constam dos relatórios de monitoramento do Exército. O informe 681 – D.6/E.250/91, de 30 de setembro de 1991, trata do encontro dos parlamentares. “O referido encontro teve como principal meta a preparação dos edis petistas para as discussões do plano diretor e da política orçamentária dos respectivos municípios, segundo as diretrizes do partido. Os políticos petistas também debateram sobre o papel do PT na luta institucional, assim como o posicionamento do partido frente ao parlamento”, enfatiza o texto.
O relatório 00683 – D.6/e.250/91, de 30 de setembro de 1991, sobre os encontros do partido destaca que “o principal objetivo dos eventos visa propiciar aos Diretórios Municipais e Zonais, a escolha dos delegados e observadores, assim como a discussão dos participantes dos temas que serão debatidos no Congresso petista, previsto para o período de 27 NOV à (sic) 01 DEZ 91, nas dependências do PAVILHÃO VERA CRUZ, no município de SÃO BERNARDO/ SP”.
Ambos os documentos são datados de 30 de setembro de 1991 e têm como origem o Comando Militar do Sudeste. A ordem é para que as informações sejam repassadas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo.
Um ciclo de debates promovido pelo PC do B sobre problemas do socialismo e a situação mundial também foi monitorado pelo Comando Militar do Sudeste. O informe 00678/B91-E.250, de 26 de setembro de 1991, explica que “o PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) objetivando aprofundar a discussão sobre os temas relevantes da Tese inicial para o seu 8º CONGRESSO NACIONAL, previsto para JAN 92, promoveu e realizará um CICLO DE DEBATES no período de 05 SET A 24 out 91, todas as quintas-feiras, no salão PEDROSO HORA da CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO.  Os debates terão como tema básico “PROBLEMAS DO SOCIALISMO E SITUAÇÃO MUNDIAL”.  O agente fornece os nomes dos debatedores e a programação do ciclo organizado pelos comunistas.
O documento deve ser difundido para os mesmos órgãos que os indicados para os informes relativos ao PT. Tanto os documentos referentes ao PT quanto os do PC do B possuem carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste.
O informe de 19 de novembro de 1991 sobre a Convergência Socialista é o único em que não aparece como origem o Comando Militar do Sudeste. No espaço reservado a essa identificação consta a palavra Lotus, provavelmente o codinome do agente que acompanhou a reunião do Comitê Central da organização, que ocorreu em São Paulo nos dias 15, 16 e 17 de novembro. A Convergência era à época uma tendência interna do PT.
O relato de sete páginas é rico em detalhes, afirma, por exemplo, que a corrente política pretendia formar a Frente Única Revolucionária. “Foi apresentado um informe sobre os grupos com os quais a organização vem mantendo contatos e reuniões objetivando a formação da Frente Única Revolucionária (FUR), parte de sua tática de organização de um novo partido”. Além dos tradicionais carimbos de confidencial e de fichar e arquivar aparece escrito à mão a tipologia em que o documento deveria ser catalogado: Frente Única Revolucionária.
Segundo o espião, a Convergência Socialista mantinha conversações com o Partido da Libertação Proletária (PLP) para a formação do novo partido. O texto revela que a Convergência queria manter o assunto em sigilo porque a discussão ainda era interna e, portanto, deveria ser mantida preferencialmente na cúpula das duas organizações.
Lotus ressalta que “foi ainda apresentado um relatório sobre as reuniões realizadas com outros grupos”. Os nomes dos dirigentes dos grupos com os quais a Convergência estaria conversando, para a consolidação da FUR aparecem acompanhados pelas siglas DQJD ou SDQ. Caros Amigos consultou várias pessoas, inclusive militares perseguidos pela ditadura para saber o que as siglas significam, mas ninguém soube responder.
 
Forças Armadas
A reportagem entrou em contato com os comandantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica, para que se manifestassem a respeito do monitoramento realizado na década de 90 pelas respectivas Forças, mas nenhum deles aceitou conversar com Caros Amigos.
Em nota, o Centro de Comunicação Social da Aeronáutica reconheceu que a instituição faz o monitoramento e compartilha as informações com os demais órgãos. O texto enviado pela comunicação da Aeronáutica afirma, ainda, que esse compartilhamento é componente doutrinário dos órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência.
“O Centro de Comunicação Social da Aeronáutica informa que o comunicado nº. 008/A-2/IV COMAR, de 02 de outubro de 1991, é oriundo da 2º Seção do IV Comando Aéreo Regional, que constituía, à época, o elo sistêmico da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal.
Assim como em 1991 o compartilhamento de informações faz parte, doutrinariamente, do cotidiano dos órgãos que compõem o atual Sistema Brasileiro de Inteligência.
Cabe destacar que eventos de qualquer natureza, envolvendo aglomerações urbanas, são normalmente acompanhados por órgãos de segurança civis e/ou militares.”
A nota enviada pela Marinha é assinada pelo contra-almirante Paulo Mauricio Farias Alves. O militar informa que o órgão não se posicionará a respeito. “Em procedimento investigatório realizado, não foi encontrado o documento referenciado em seu pedido. Em decorrência dessa inexistência, não é possível responder os dados requeridos.”
A assessoria de comunicação do Exército também não respondeu aos questionamentos. “Sobre um pedido de entrevista com o Comandante do Exército, a respeito de documentos sigilosos, o Centro de Comunicação Social do Exército informa o que se segue: o Comandante do Exército não concederá a entrevista solicitada”, frisa a nota encaminhada.
Caros Amigos também procurou o Ministério da Defesa para que o ministro Nelson Jobim se posicionasse sobre a espionagem realizada pelas três Forças Armadas, mas a assessoria de imprensa do Ministério informou que ele não se pronunciaria sobre essa questão.
 
Os investigados
Para o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos, o Estado brasileiro precisa avançar muito para que a sociedade se torne realmente democrática. “Mesmo após a redemocratização do país há um conjunto de documentos que demonstram que parte dessa estrutura de perseguição e monitoramento continuou. É um absurdo. Deveria ter sido enterrado com o fim da ditadura. Espero que, hoje, isso não esteja acontecendo”, critica.
O sindicalista explica que a década de 90 foi marcada pela tentativa de criminalização dos movimentos sociais e do movimento sindical, em particular. “Não chega a causar surpresa”, afirma ao se referir ao monitoramento que a CUT sofreu por parte das três Forças Armadas. “Sempre viram o movimento sindical como uma possibilidade de perda do controle.”
A deputada federal Iriny Lopes (PT-ES) quer a punição dos responsáveis pelo monitoramento praticado pelas Forças Armadas. “É um ato de violação de direitos, uma violação à Constituição, um desrespeito ao Estado de direito. Quem dirigiu, quem autorizou, quem conduziu essas operações cometeu um ato ilegal, inconstitucional. Os responsáveis devem ser exemplarmente punidos, para que isso não se repita.”
Iriny, que integra a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, destaca que esse tipo de ação de espionagem foi feita ao arrepio da lei.  “Faz parte de um pensamento atrasado e policialesco. Demonstra que parcelas das Forças Armadas e do sistema de segurança mantiveram a mesma visão do tempo da ditadura. Revela uma arbitrariedade, uma flagrante inconstitucionalidade, uma flagrante ilegalidade. É um absurdo. Repudio veemente um comportamento dessa natureza”, frisa a petista.
A parlamentar alerta que aqueles que tiveram sua privacidade devassada podem acionar o Estado. “Eles (militares) monitoraram ilegalmente, catalogaram, perseguiram ideologicamente. A legislação permite que as pessoas que foram violadas tomem medidas legais para a reparação desse tipo de ilegalidade.”
O monitoramento dos comunistas pelas Forças Armadas não causa espanto no presidente do PC do B, Renato Rabelo. Mas o dirigente se surpreende, no entanto, com o período em que isso ocorreu.  “Mesmo com o fim do regime militar, as Forças Armadas mantiveram o serviço de inteligência voltado a vigiar e acompanhar os movimentos sociais. Isso para mim não é novidade. Mas a gente não sabia que isso foi feito na década de 90. Pensei que fosse só até ao final da década de 80. No começo dos anos 80 invadiram várias casas, inclusive, a minha, levaram meus livros, documentos”, revela.
O PC do B foi uma das organizações duramente atacadas pelos militares durante a ditadura. O partido teve seu Comitê Central praticamente dizimado no episódio que ficou conhecido como o massacre da Lapa, em 1976, quando os dirigentes Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram fuzilados por militares do Exército e João Baptista Franco Drummond assassinado sob tortura no DOI-Codi paulista. Na primeira metade da década 70, o PC do B já havia sofrido um dos piores golpes impostos pelos militares, quando os guerrilheiros que atuavam no Araguaia foram executados pelas forças da repressão.
Assim como a deputada Iriny, o dirigente comunista enfatiza o fato de os militares realizarem esse tipo de monitoramento à revelia da lei. “As Forças Armadas não têm o preceito constitucional para vigiar o povo. É uma excrescência, um absurdo.” Ele também questiona a envergadura do aparato montado para espionar a esquerda. “Têm uma estrutura enorme para fazer esse trabalho de investigação. Eu não sei como isso vem se desenvolvendo de lá pra cá, se mantém esse tipo de serviço secreto”, questiona.
"Os movimentos sociais e os partidos políticos que não aceitam a ordem vigente são monitorados", afirma o presidente do PSTU e ex-candidato a presidente da República, José Maria de Almeida, o Zé Maria. "A democracia representativa é um mito. O Estado tem lado, é capitalista e monitora qualquer agrupamento que possa vir a representar algum perigo para a manutenção do status quo. Pode ter sido infiltrado ou serviço de escuta", ressalta ao se referir à espionagem que a Convergência sofreu.
As Forças Armadas devem uma satisfação à sociedade brasileira sobre a espionagem praticada, segundo o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abraão. “Isso caracteriza monitoramento ilegal. O monitoramento só pode ocorrer com autorização judicial”, enfatiza Paulo Abraão, que também é advogado.
Para ele, o não afastamento dos agentes, que serviram ao regime militar, de seus cargos após a redemocratização e a ausência de uma profunda reforma nas Forças Armadas permitem que situações como as identificadas pela reportagem da Caros Amigos aconteçam. “Na Argentina houve o afastamento das pessoas que participaram de funções gerenciais durante a ditadura militar, houve um processo de depuração. Aqui isso nunca aconteceu.”
Paulo Abraão questiona o termo “doutrinariamente” utilizado pela Aeronáutica na nota enviada a Caros Amigos. “As palavras têm força, têm um simbolismo muito grande. A que tipo de doutrinamento se refere? Àquele do regime militar que não respeitava os direitos fundamentais?”, indaga.
Curiosamente o Comando da Aeronáutica publicou portaria, no dia 23 de agosto, instituindo uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos Sigilosos do Comando da Aeronáutica. A Comissão está subordinada diretamente ao comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do Ar, Juniti Saito.
O presidente da Comissão de Anistia vê com preocupação o fato de não haver o controle da sociedade civil.  Ele considera estranho também o fato de a portaria se referir à documentação produzida e arquivada pelo Comando da Aeronáutica.  “As Forças Armadas ainda não se submeteram integralmente ao poder civil. Há um ranço ideológico ao direcionar o monitoramento para a esquerda.”
 
Cuba na mira
A Ilha de Fidel sempre provocou calafrios na cervical dos homens de farda que comandaram o Brasil entre 1964 e 1985. O socialismo cubano era visto como elemento desestabilizador da ordem imposta pelos generais. Era visto... é força de expressão. Porque pelo que a reportagem da Caros Amigos apurou, Cuba continuou sendo motivo de preocupação entre os militares, também nos anos 90.
Documentos confidenciais, de setembro de 1991, comprovam que as Forças Armadas acompanharam os passos dos cubanos Roberto Garcia Robaiña, da União da Juventude Comunista (UJC), e Ana Maria Peñon Saez, da Organização Continental Latinoamericana de Estudantes (Oclae), desde o momento em que os dois desembarcaram, em 21 de setembro, no aeroporto internacional de Guarulhos, localizado na Grande São Paulo.
O nível de detalhamento do relatório produzido pelo serviço de espionagem chama a atenção. Descreve em minúcias, horários e locais por onde os dois passaram durante a estadia no país, registra suas intervenções. A documentação que revela o monitoramento dos ativistas apresenta grau de sofisticação superior aos demais relatórios encontrados pela reportagem. A espionagem feita contra os cubanos vem acompanhada, inclusive, por um “álbum” com oito fotografias.
Uma delas chama particularmente à atenção pela forma como foi obtida. Tirada por um agente, provavelmente, escondido no interior de um veículo, Robaiña aparece identificado, com o número 1 escrito à caneta, e Ana Maria, com o número 2. Além dos dois cubanos, uma terceira pessoa, que acompanhava o casal, também aparece na foto e é identificada no relatório. Os três estão na rua e carregam bolsas e pacotes.
Outras duas fotos do “álbum” também surpreendem. Aparentemente foram extraídas de câmeras filmadoras do circuito interno do aeroporto (confira as imagens em www.carosamigos.com.br). Robaiña é identificado em uma delas. Na outra, aparece Cristobal Pupo Telles, descrito pelos militares como membro da Embaixada Cubana.
O documento do serviço de espionagem afirma que Robaiña e Ana Maria deixaram o país, na noite do dia 27 de setembro, na companhia do compatriota Pupo Telles. “Às 22h30, Ana Maria, que portava passaporte diplomático, Pupo Telles e Robaiña embarcaram no vôo 820 Vasp, com destino a Aruba.”
A informação de que Ana Maria viajou com passaporte diplomático demonstra que o serviço de inteligência do Exército contava com apoio de agentes da Polícia Federal no aeroporto. O órgão era o responsável pela fiscalização do documento no momento de embarque dos passageiros com destinos internacionais.
 
Passo a passo
O relatório intitulado: Atividades de Roberto Garcia Robaiña e Ana Maria Peñon Saez é rico em minúcias. O serviço de espionagem se preocupa em fornecer o maior número possível de informações. A descrição dos horários é uma praxe no texto. Logo na abertura do relato, o agente afirma que os dois cubanos chegaram ao Brasil, às 19h45 do dia 21 de setembro, procedentes de Santiago do Chile.
“Na manhã seguinte, Robaiña e Ana Maria seguiram com destino a Santos/SP, onde chegaram às 11h30.” O serviço de espionagem informa que eles se dirigiram a um colégio onde se realizava o 7º Congresso da União Paulista de Estudantes Secundaristas (Upes). O agente infiltrado relata que ao terem os nomes anunciados, no local onde se realizava a plenária dos estudantes, os cubanos foram ovacionados aos gritos de solidariedade a Cuba.
“Dirigindo-se à platéia, Ana Maria agradeceu a acolhida, falou da importância da solidariedade prestada pela juventude brasileira à causa cubana e reafirmou a determinação do povo cubano na manutenção da ‘revolução cubana’ na Ilha. Às 12h30, o grupo deixou a cidade de Santos/SP, retornando para São Paulo.” O relato afirma que à tarde os ativistas visitaram um mutirão de moradias populares em Guaianazes, bairro da periferia da zona leste da capital paulista. O relatório informa, ainda, que à noite “às 21h, embarcaram no aeroporto de Congonhas, com destino ao Rio de Janeiro/RJ, no vôo 401 – TAM”, ressalta o espião.
No dia seguinte, 23 de setembro, o serviço de espionagem continuou seguindo os passos dos dois cubanos, agora no Estado do Rio de Janeiro. Segundo o relato, os ativistas foram ao município de Campos, onde foram recebidos pelo então prefeito Anthony Garotinho. “A Prefeitura de Campos/RJ vem firmando convênios com Havana.”
Às 9h do dia 24 de setembro teriam participado de uma entrevista na sede do jornal O Globo. Uma hora e meia depois participaram de uma audiência e, posteriormente, de um almoço com o então prefeito do Rio, Marcello Alencar. Leonel Brizola, então governador do Estado do Rio, recebeu os cubanos às 15h, em audiência. Às 18h, foram recebidos por Ivo Biasi Barbieri, então reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde também participaram de um debate no auditório 71 da instituição, às 19h. O serviço de espionagem informa que o evento contou com a presença de aproximadamente 300 pessoas.
Parte da intervenção do cubano também é relatada. “Roberto Robaiña iniciou seu discurso expondo as dificuldades pelas quais Cuba vêm passando após o desalinhamento com a URSS e a constante pressão do “imperialismo” norte-americano”, informa o texto do agente. O cubano investigado pelos militares se tornou ministro das Relações Exteriores de Fidel Castro, anos mais tarde.
A sessão solene em homenagem a amizade entre os povos brasileiro e cubano e pelo fim do bloqueio econômico a Cuba, realizada no dia 25 de setembro de 1991, na Câmara Municipal de São Paulo, que teve as presenças de Robaiña e Ana Maria, foi acompanhada de perto pelo Exército. O informe 00688-A/91/E.250, de 30 de setembro de 1991, apresenta carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste e traz o nome das pessoas que compuseram a mesa da solenidade, identificadas com as siglas DQJD ou SDQ.  Cinco fotografias registram o evento. Além de Robaiña e Ana Maria, outro identificado é o vereador da capital paulista Jamil Murad (PC do B), à época deputado estadual pelo partido. 
Assim como os demais documentos produzidos pelo Exército, esse também determina que as informações sejam difundidas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo. A origem do relatório é identificada como Outono, provavelmente o codinome do agente que acompanhou o evento.
 
 
 
Movimentos sociais foram vigiados por infiltrados da Polícia Civil de São Paulo
 
O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, também foi monitorado pelos espiões do órgão que sucedeu o Dops
 
Assim como as três Forças Armadas, o órgão que sucedeu o antigo Dops não abandonou os métodos empregados por seu antecessor. Os agentes da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo continuaram realizando o monitoramento de movimentos sociais na década de 90.
Relatórios encontrados por Caros Amigos no Arquivo Público do Estado de São Paulo revelam que os arapongas acompanharam manifestações, passeatas, assembléias sindicais, encontros de organizações políticas. O novo órgão deu atenção especial ao movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).  O agente responsável pelas duas universidades produzia geralmente três relatórios semanais descrevendo o que lia nos murais das faculdades.  A Associação dos Docentes da USP (Adusp) e o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) também foram monitorados pelo órgão.
Os espiões da Polícia Civil se identificavam em seus relatórios por um código alfa-númerico. Na esmagadora maioria dos casos, os infiltrados se apresentam como Gama e acrescentam um número, que os diferenciava. A reportagem identificou, no entanto, relatórios em que alguns agentes se identificavam como Quebec e Lince.
A reportagem da Caros Amigos localizou o delegado Ayrton Martini, responsável pelo Departamento de Comunicação Social ao qual estava subordinada a Divisão de Informações Sociais, que fazia essa espionagem. Ele negou que o órgão que dirigia realizasse esse tipo de ação. “Não, não, não. No meu tempo não tinha mais isso. Eu acho que deve estar havendo um engano. Não havia mais monitoramento. No tempo do Dops, sim. No meu tempo, não. Foi a re-de-mo-cra-ti-za-ção do país”, afirma cadenciando a palavra.
Hoje, ele está aposentado, mas além de exercer a direção do órgão de monitoramento, Martini conta que também atuou na Corregedoria e no Departamento de Polícia Científica. Caros Amigos também apurou que ele foi secretário de Segurança Pública em Mairiporã, município do interior de São Paulo, na gestão do PFL (Partido da Frente Liberal).
 
De olho na lupa
Os agentes subordinados a Martini monitoraram todo tipo de assembleia ou encontro de trabalhadores: bancários, médicos, aeroviários, lixeiros, aposentados, condutores, frentistas, jornalistas, metalúrgicos etc. etc. etc. Nada escapava da lupa desses agentes. As reuniões de organizações políticas também estiveram no alvo das investigações.
As passeatas do Fora Collor, é claro, também foram monitoradas. Caros Amigos teve acesso a um desses relatórios. Nele, o delegado Cesar Silva de Sousa informa ao delegado responsável pela operação, Enos Beolchi Jr, que a Operação Setembro, como era conhecida a ação, envolveu 33 policiais da DIS, seis da DCC e oito da assistência policial. Ainda de acordo com o relato do delegado, foram utilizadas sete viaturas no evento. “Nossos policiais recolheram vários panfletos durante a manifestação”, ressalta Sousa, que, hoje, é delegado no 14º Distrito Policial, em Pinheiros, zona oeste da capital paulista. O delegado Beolchi Jr., segundo informações da assessoria de imprensa da Delegacia Geral de Polícia, já faleceu.
 
Comunista
O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, é citado pelo menos em três relatórios de agentes. “Um dos incitadores à massa foi Jamil Murad”, afirmam os agentes Gama 16, 22, 38 e 50, no relatório 498/94, de 7 de dezembro de 1994. O relato descreve o comportamento do parlamentar durante ato contra o leilão de privatização da Embraer, que ocorreu no centro da capital paulista. O serviço de espionagem mandou para o local pelo menos quatro espiões.
Jamil também aparece no relatório 574/93, de 01 de outubro de 1993. Os infiltrados Gama 21 e Gama 29 acompanharam uma manifestação de aposentados no centro de São Paulo. No relatório, eles afirmam que o parlamentar “mencionou o ‘sucateamento’ das empresas estatais pelo governo federal e a intenção de privatização no sistema previdenciário”.
Os mesmos agentes também acompanharam uma passeata organizada pela CUT contra a revisão constitucional, em setembro de 1993. “Notamos a presença de 200 pessoas dentre militantes do Partido dos Trabalhadores, do Partido Comunista do Brasil, entre outros,” destaca o relatório 569/93, de 29 de setembro de 1993, desses agentes. Eles contam que houve distribuição de panfletos e falas contrárias à revisão constitucional e citam Jamil Murad, como um dos oradores.
O parlamentar ficou surpreso ao saber que foi monitorado pelo setor de inteligência do órgão que substituiu o Dops. “Eu não sabia que isso tinha acontecido. Para mim foi uma surpresa”, frisa Jamil Murad. “Aqui não houve um processo de ruptura com o passado, como ocorreu em Portugal após a Revolução dos Cravos. Lá as forças salazaristas foram varridas das instituições. No Brasil houve um longo processo de acomodação”, completa o vereador comunista.
 
Trotskista
As organizações Causa Operária e Convergência Socialista também foram monitoradas pelos espiões na década de 90. Na época, as duas eram tendências internas do PT. Rui Costa Pimenta e Anaí Caproni, que concorreram nas últimas eleições pelo Partido da Causa Operária (PCO) à Presidência da República e ao Governo do Estado de São Paulo, respectivamente, tiveram um curso de formação política da corrente política, que aconteceu em Mairiporã, monitorado.
Pelo menos dois agentes, Gama 23 e Gama 73, acompanharam esse curso. Os relatórios 01/90 e 12/90, ambos de 16 de junho de 1990 fornecem uma riqueza de detalhes sobre essa atividade. Até mesmo o alojamento onde os militantes se acomodaram é citado no texto. “Cada quarto continha de 4 a 6 beliches e um banheiro.” Horários de deslocamento dos dirigentes da organização também são ressaltados. O agente Gama 73 conclui seu relato afirmando que “os endereços dos militantes já foram fornecidos em relatórios anteriores”.
Uma das atividades da Convergência monitoradas chama a atenção. Gama 73, o mesmo agente que acompanhou o curso de formação da Causa Operária vigiou militantes da corrente política que apoiavam chapa oposicionista na eleição do Sindicato dos Metalúrgicos. Relatório sem número, de 22 de março de 1990, informa, por exemplo, que o espião acompanhou as panfletagens nas portas de fábricas desde às 6h15. O infiltrado fornece a placa do veículo em que os ativistas deixaram o local ao término da atividade. “Veraneio verde escura, placa RV 4251 – SP”. Ele também descreve o teor de conversas, além de informar o novo endereço e telefone da Convergência Socialista.
A Delegacia Geral de Polícia não quis comentar o assunto. Em nota, a assessoria de imprensa do órgão informou que “as questões referentes aos procedimentos devem ser feitas diretamente aos policiais que integravam a Polícia Civil de São Paulo na época em que os fatos teriam ocorrido”. A instituição nega que esse tipo de ação seja desenvolvido hoje. “A DGP esclarece também que todos os levantamentos e/ou monitoramentos, atualmente realizados pela entidade, têm natureza criminal. Ou seja, são iniciados a partir de algo que indique a existência de um crime”, diz a nota.
 
Lúcia Rodrigues é jornalista.

Shellen Baptista Galdino
Centro Acadêmico de Serviço Social - UFPB

“Os poderosos podem matar uma,
duas ou até três rosas,
mas jamais poderão deter a primavera.”
 Che Guevara
Para ENESSO R2, ENESSO, CASS UFPB, Serviço Social Noite 2010, Serviço Social UFCG, Jymson FAFIC
Pra ninguem pensar que é brincadeira ou paranóia. O texto é grande mas vale a pena ler.


 
 
Militares espionaram esquerda na década de 90
 
Documentos confidenciais do Exército, Marinha e Aeronáutica localizados por Caros Amigosrevelam que a espionagem política das Forças Armadas se manteve no período democrático, após o fim da ditadura militar. Aeronáutica afirma que faz isso até hoje
 
Por Lúcia Rodrigues
 
O DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), o centro de tortura mais temido pelos ativistas de esquerda no final dos anos 60 e na década de 70, pode até ter deixado de existir, mas os serviços de inteligência do Exército, da Marinha, Aeronáutica e das polícias Civil, Militar e Federal não foram extintos com a queda da ditadura.
Apesar de os arquivos da ditadura militar ainda não terem sido abertos, documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que as Forças Armadas continuaram agindo de maneira integrada na investigação da esquerda nos anos 90. Partidos políticos, movimentos sociais e até mesmo ativistas estrangeiros estiveram na mira dos agentes da repressão.
A reportagem da revista encontrou documentos  inéditos no meio de quase 20 mil documentos distribuídos em 454 pastas que repousam empilhadas nas prateleiras de aço do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Os relatórios da repressão estavam junto com os demais documentos do arquivo secreto da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo, órgão de inteligência que substituiu o antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no monitoramento político no período pós-redemocratização.
A documentação encontrada revela que além do monitoramento, havia também a troca de informações entre as três Forças Armadas e as polícias Civil, Militar e Federal. Esse compartilhamento de informações entre as Forças Armadas e os órgãos policiais foi o que possibilitou o encontro desses documentos confidenciais e que estavam sob a guarda do setor de espionagem da Polícia Civil de São Paulo.  Em 1999 veio à tona que o órgão que sucedeu o Dops mantinha o monitoramento político. O material foi repassado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, mas só foi disponibilizado para a consulta pública em fevereiro deste ano. (Confira a reprodução da primeira página de alguns dos documentos secretos encontrados pela reportagem da Caros Amigos em www.carosamigos.com.br).
Apesar de conter elementos cruciais que revelam o modo de agir do setor de espionagem militar no monitoramento à esquerda brasileira e internacional, a documentação é apenas uma pontinha no imenso iceberg que poderá ser revelado quando os arquivos da repressão forem de fato abertos. Nem tudo foi repassado. É possível verificar hiatos temporais significativos no acervo da espionagem do pós-Dops.
 
Sindicalismo
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central sindical do país, foi investigada pelo Exército, pela Marinha e Aeronáutica nos anos 90. Relatórios confidências das três Forças Armadas revelam a preocupação dos militares com a atuação da CUT.
O informe do Exército 247/91, de 26 de setembro de 1991, relata a decisão da Central de disputar a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), tomada durante o 4º congresso da entidade. “Essa decisão coloca em jogo a luta pela liderança de três mil sindicatos e vinte e duas federações da categoria”, alerta o agente, que aproveita para informar que durante o congresso “os trabalhadores rurais realizaram um ato de protesto contra a violência no campo e a concentração de terras no Brasil.”
O relato evidencia um claro viés ideológico na investigação. O responsável pelo texto sobre a CUT utiliza aspas quando se refere ao golpe militar. “AVELINO GANZER, membro da Executiva Nacional da CUT e ex-presidente do Sindicato Rural (sic) de Santarém/PA, lembrou as últimas estatísticas das mortes no campo. Destacou que do “golpe militar” até hoje foram registradas 1.630 mortes em conflito por terra e, dos 24 processos concluídos, apenas três mandantes foram condenados.” O relatório traz ainda parte do discurso de Ganzer. “Dramaticamente, nos últimos cinco anos, 53 dirigentes foram mortos em aproximadamente 687 conflitos, finalizou”, ressalta o araponga.
O documento informa que o relatório deve ser repassado para a Comissão Naval, o IV Comar (Comando Aéreo Regional), a Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo. No informe consta ainda que essas informações partiram do 4º BIB (Batalhão de Infantaria Blindado) do Exército. A difusão anterior também é informada. Foi feita pelo Comando Militar do Sudeste, órgão que substituiu, no período democrático, o II Exército ao qual estava subordinado o DOI-Codi
Já a Marinha em seu informe 0130/20/1991, de 25 de setembro de 1991, discorre sobre o Suplemento nº 28 do Departamento de Estudos Socioeconômicos e Políticos (Desep), da CUT. “O SUPLEMENTO, que tem o apoio da CUT Estadual de São Paulo, reúne textos e análises sobre a conjuntura e as tendências do movimento sindical, tem como objetivo principal a elaboração de análises, estudos e pesquisas para subsidiar a atuação da CUT e para estimular o debate e a crítica sobre a evolução das lutas sindicais”, afirma o texto.
O nome dos membros que compõem a Direção Executiva do Desep, sua coordenação e equipe constam desse informe. À época o Desep era chefiado pelo metalúrgico Oswaldo Bargas, que viria a ocupar o cargo de secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego no primeiro mandato do presidente Lula.
A força naval anexa às informações cópia do Suplemento, para que seja compartilhada com o Comando do 1º Distrito Naval, localizado no Rio de Janeiro, Comando Militar do Sudeste (Exército), IV Comar (Aeronáutica), a Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal no Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Policial Civil de São Paulo, Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Essa investigação, segundo informações contidas no relatório, partiu da Comissão Naval em São Paulo.
O comunicado 008/A-2/IV Comar, de 02 de outubro de 1991, da Aeronáutica trata das teses do 6º Congresso Estadual da CUT São Paulo e da programação do Seminário Internacional sobre Socialismo que aconteceria no Instituto Cajamar, instituição ligada ao Partido dos Trabalhadores. “Remetemos para conhecimento as cópias xerox constantes do anexo.” A origem das informações, segundo o relatório, é da Embraer, a empresa da aeronáutica que fabrica aviões. Assim como o Exército e a Marinha, a Aeronáutica  compartilha suas informações. O Comando Militar do Sudeste, a Comissão Naval em São Paulo, o Departamento da Polícia Federal em São Paulo, a Polícia Militar de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social e o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de São Paulo constam como órgãos para os quais o informe deve ser repassado. Envio de publicações sindicais é o título do comunicado encaminhado pela Aeronáutica.
Os relatórios das três Forças Armadas vêm acompanhados, sempre, por carimbos de confidencial e de fichar e arquivar. O da Aeronáutica tem ainda o carimbo do Ministério da Aeronáutica – IV Comar - 2ª Seção, o da Marinha, o da Comissão Naval em São Paulo; o do Exército apresenta carimbo da 2ª Seção da 2ª Divisão do EMG (Estado Maior Geral). Os documentos do Exército e da Aeronáutica vêm acompanhados ainda por outro carimbo, que informa: “o destinatário é o responsável pela manutenção do sigilo deste documento (art. 12 do RSAS – Dec. 79.099 de 05 JAN 77)”.  Trata-se do Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos fixado durante a ditadura militar.
A atuação da Corrente Sindical Classista (CSC), ligada ao PC do B, também foi monitorada pelo Exército no 4º Congresso Nacional da CUT. “A CORRENTE SINDICAL CLASSISTA (CSC) composta por sindicalistas do PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) participou do IV CONGRESSO DA CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (IV CONCUT), realizado em SÃO PAULO/CAPITAL), no período de 04 a 08 SET 91, com uma delegação de cerca de 213 representantes eleitos em quase todos os estados do País.”
O relato de 30 de setembro de 1991 e que teve origem no Comando Militar do Sudeste, informa ainda que o número de delegados da CSC presentes ao congresso permitiu à entidade se tornar a terceira força na entidade, atrás apenas da Articulação e da CUT pela Base.  “Este fato foi muito comemorado por militantes do Partido como altamente positivo considerando que, a CSC foi fundada a menos de 3 anos e filiou-se à CUT há pouco mais de 1 ano (MAR 90)... Conseguiu, ainda, eleger ALOISIO SÉRGIO ROCHA BARROSO, coordenador nacional da CSC e ANTONIO RENILDO SANTANA DE SOUZA para membros da Direção Nacional da CUT.”
Os militares também se preocupavam em produzir relatórios mensais intitulados Panorama Mensal do Movimento Sindical. Esses relatos faziam uma análise das atividades sindicais que se desenvolviam ao longo do mês. Caros Amigos encontrou dois desses relatórios. Eles não estão com o timbre de nenhuma das Forças Armadas, embora sejam redigidos no mesmo tipo de papel (textura, coloração, tamanho). A primeira e a última página aparecem cortadas, uma tinta preta parecida com a de um pincel atômico esconde provavelmente a origem do material.
 
Partidos Políticos
Além da CUT, os documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que o Exército também monitorou o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B).  A Convergência Socialista, organização trotskista que deu origem ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), em 1994, também foi investigada.
No caso do PT, os encontros municipais e zonais do partido e o encontro de seus vereadores constam dos relatórios de monitoramento do Exército. O informe 681 – D.6/E.250/91, de 30 de setembro de 1991, trata do encontro dos parlamentares. “O referido encontro teve como principal meta a preparação dos edis petistas para as discussões do plano diretor e da política orçamentária dos respectivos municípios, segundo as diretrizes do partido. Os políticos petistas também debateram sobre o papel do PT na luta institucional, assim como o posicionamento do partido frente ao parlamento”, enfatiza o texto.
O relatório 00683 – D.6/e.250/91, de 30 de setembro de 1991, sobre os encontros do partido destaca que “o principal objetivo dos eventos visa propiciar aos Diretórios Municipais e Zonais, a escolha dos delegados e observadores, assim como a discussão dos participantes dos temas que serão debatidos no Congresso petista, previsto para o período de 27 NOV à (sic) 01 DEZ 91, nas dependências do PAVILHÃO VERA CRUZ, no município de SÃO BERNARDO/ SP”.
Ambos os documentos são datados de 30 de setembro de 1991 e têm como origem o Comando Militar do Sudeste. A ordem é para que as informações sejam repassadas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo.
Um ciclo de debates promovido pelo PC do B sobre problemas do socialismo e a situação mundial também foi monitorado pelo Comando Militar do Sudeste. O informe 00678/B91-E.250, de 26 de setembro de 1991, explica que “o PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) objetivando aprofundar a discussão sobre os temas relevantes da Tese inicial para o seu 8º CONGRESSO NACIONAL, previsto para JAN 92, promoveu e realizará um CICLO DE DEBATES no período de 05 SET A 24 out 91, todas as quintas-feiras, no salão PEDROSO HORA da CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO.  Os debates terão como tema básico “PROBLEMAS DO SOCIALISMO E SITUAÇÃO MUNDIAL”.  O agente fornece os nomes dos debatedores e a programação do ciclo organizado pelos comunistas.
O documento deve ser difundido para os mesmos órgãos que os indicados para os informes relativos ao PT. Tanto os documentos referentes ao PT quanto os do PC do B possuem carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste.
O informe de 19 de novembro de 1991 sobre a Convergência Socialista é o único em que não aparece como origem o Comando Militar do Sudeste. No espaço reservado a essa identificação consta a palavra Lotus, provavelmente o codinome do agente que acompanhou a reunião do Comitê Central da organização, que ocorreu em São Paulo nos dias 15, 16 e 17 de novembro. A Convergência era à época uma tendência interna do PT.
O relato de sete páginas é rico em detalhes, afirma, por exemplo, que a corrente política pretendia formar a Frente Única Revolucionária. “Foi apresentado um informe sobre os grupos com os quais a organização vem mantendo contatos e reuniões objetivando a formação da Frente Única Revolucionária (FUR), parte de sua tática de organização de um novo partido”. Além dos tradicionais carimbos de confidencial e de fichar e arquivar aparece escrito à mão a tipologia em que o documento deveria ser catalogado: Frente Única Revolucionária.
Segundo o espião, a Convergência Socialista mantinha conversações com o Partido da Libertação Proletária (PLP) para a formação do novo partido. O texto revela que a Convergência queria manter o assunto em sigilo porque a discussão ainda era interna e, portanto, deveria ser mantida preferencialmente na cúpula das duas organizações.
Lotus ressalta que “foi ainda apresentado um relatório sobre as reuniões realizadas com outros grupos”. Os nomes dos dirigentes dos grupos com os quais a Convergência estaria conversando, para a consolidação da FUR aparecem acompanhados pelas siglas DQJD ou SDQ. Caros Amigos consultou várias pessoas, inclusive militares perseguidos pela ditadura para saber o que as siglas significam, mas ninguém soube responder.
 
Forças Armadas
A reportagem entrou em contato com os comandantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica, para que se manifestassem a respeito do monitoramento realizado na década de 90 pelas respectivas Forças, mas nenhum deles aceitou conversar com Caros Amigos.
Em nota, o Centro de Comunicação Social da Aeronáutica reconheceu que a instituição faz o monitoramento e compartilha as informações com os demais órgãos. O texto enviado pela comunicação da Aeronáutica afirma, ainda, que esse compartilhamento é componente doutrinário dos órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência.
“O Centro de Comunicação Social da Aeronáutica informa que o comunicado nº. 008/A-2/IV COMAR, de 02 de outubro de 1991, é oriundo da 2º Seção do IV Comando Aéreo Regional, que constituía, à época, o elo sistêmico da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal.
Assim como em 1991 o compartilhamento de informações faz parte, doutrinariamente, do cotidiano dos órgãos que compõem o atual Sistema Brasileiro de Inteligência.
Cabe destacar que eventos de qualquer natureza, envolvendo aglomerações urbanas, são normalmente acompanhados por órgãos de segurança civis e/ou militares.”
A nota enviada pela Marinha é assinada pelo contra-almirante Paulo Mauricio Farias Alves. O militar informa que o órgão não se posicionará a respeito. “Em procedimento investigatório realizado, não foi encontrado o documento referenciado em seu pedido. Em decorrência dessa inexistência, não é possível responder os dados requeridos.”
A assessoria de comunicação do Exército também não respondeu aos questionamentos. “Sobre um pedido de entrevista com o Comandante do Exército, a respeito de documentos sigilosos, o Centro de Comunicação Social do Exército informa o que se segue: o Comandante do Exército não concederá a entrevista solicitada”, frisa a nota encaminhada.
Caros Amigos também procurou o Ministério da Defesa para que o ministro Nelson Jobim se posicionasse sobre a espionagem realizada pelas três Forças Armadas, mas a assessoria de imprensa do Ministério informou que ele não se pronunciaria sobre essa questão.
 
Os investigados
Para o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos, o Estado brasileiro precisa avançar muito para que a sociedade se torne realmente democrática. “Mesmo após a redemocratização do país há um conjunto de documentos que demonstram que parte dessa estrutura de perseguição e monitoramento continuou. É um absurdo. Deveria ter sido enterrado com o fim da ditadura. Espero que, hoje, isso não esteja acontecendo”, critica.
O sindicalista explica que a década de 90 foi marcada pela tentativa de criminalização dos movimentos sociais e do movimento sindical, em particular. “Não chega a causar surpresa”, afirma ao se referir ao monitoramento que a CUT sofreu por parte das três Forças Armadas. “Sempre viram o movimento sindical como uma possibilidade de perda do controle.”
A deputada federal Iriny Lopes (PT-ES) quer a punição dos responsáveis pelo monitoramento praticado pelas Forças Armadas. “É um ato de violação de direitos, uma violação à Constituição, um desrespeito ao Estado de direito. Quem dirigiu, quem autorizou, quem conduziu essas operações cometeu um ato ilegal, inconstitucional. Os responsáveis devem ser exemplarmente punidos, para que isso não se repita.”
Iriny, que integra a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, destaca que esse tipo de ação de espionagem foi feita ao arrepio da lei.  “Faz parte de um pensamento atrasado e policialesco. Demonstra que parcelas das Forças Armadas e do sistema de segurança mantiveram a mesma visão do tempo da ditadura. Revela uma arbitrariedade, uma flagrante inconstitucionalidade, uma flagrante ilegalidade. É um absurdo. Repudio veemente um comportamento dessa natureza”, frisa a petista.
A parlamentar alerta que aqueles que tiveram sua privacidade devassada podem acionar o Estado. “Eles (militares) monitoraram ilegalmente, catalogaram, perseguiram ideologicamente. A legislação permite que as pessoas que foram violadas tomem medidas legais para a reparação desse tipo de ilegalidade.”
O monitoramento dos comunistas pelas Forças Armadas não causa espanto no presidente do PC do B, Renato Rabelo. Mas o dirigente se surpreende, no entanto, com o período em que isso ocorreu.  “Mesmo com o fim do regime militar, as Forças Armadas mantiveram o serviço de inteligência voltado a vigiar e acompanhar os movimentos sociais. Isso para mim não é novidade. Mas a gente não sabia que isso foi feito na década de 90. Pensei que fosse só até ao final da década de 80. No começo dos anos 80 invadiram várias casas, inclusive, a minha, levaram meus livros, documentos”, revela.
O PC do B foi uma das organizações duramente atacadas pelos militares durante a ditadura. O partido teve seu Comitê Central praticamente dizimado no episódio que ficou conhecido como o massacre da Lapa, em 1976, quando os dirigentes Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram fuzilados por militares do Exército e João Baptista Franco Drummond assassinado sob tortura no DOI-Codi paulista. Na primeira metade da década 70, o PC do B já havia sofrido um dos piores golpes impostos pelos militares, quando os guerrilheiros que atuavam no Araguaia foram executados pelas forças da repressão.
Assim como a deputada Iriny, o dirigente comunista enfatiza o fato de os militares realizarem esse tipo de monitoramento à revelia da lei. “As Forças Armadas não têm o preceito constitucional para vigiar o povo. É uma excrescência, um absurdo.” Ele também questiona a envergadura do aparato montado para espionar a esquerda. “Têm uma estrutura enorme para fazer esse trabalho de investigação. Eu não sei como isso vem se desenvolvendo de lá pra cá, se mantém esse tipo de serviço secreto”, questiona.
"Os movimentos sociais e os partidos políticos que não aceitam a ordem vigente são monitorados", afirma o presidente do PSTU e ex-candidato a presidente da República, José Maria de Almeida, o Zé Maria. "A democracia representativa é um mito. O Estado tem lado, é capitalista e monitora qualquer agrupamento que possa vir a representar algum perigo para a manutenção do status quo. Pode ter sido infiltrado ou serviço de escuta", ressalta ao se referir à espionagem que a Convergência sofreu.
As Forças Armadas devem uma satisfação à sociedade brasileira sobre a espionagem praticada, segundo o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abraão. “Isso caracteriza monitoramento ilegal. O monitoramento só pode ocorrer com autorização judicial”, enfatiza Paulo Abraão, que também é advogado.
Para ele, o não afastamento dos agentes, que serviram ao regime militar, de seus cargos após a redemocratização e a ausência de uma profunda reforma nas Forças Armadas permitem que situações como as identificadas pela reportagem da Caros Amigos aconteçam. “Na Argentina houve o afastamento das pessoas que participaram de funções gerenciais durante a ditadura militar, houve um processo de depuração. Aqui isso nunca aconteceu.”
Paulo Abraão questiona o termo “doutrinariamente” utilizado pela Aeronáutica na nota enviada a Caros Amigos. “As palavras têm força, têm um simbolismo muito grande. A que tipo de doutrinamento se refere? Àquele do regime militar que não respeitava os direitos fundamentais?”, indaga.
Curiosamente o Comando da Aeronáutica publicou portaria, no dia 23 de agosto, instituindo uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos Sigilosos do Comando da Aeronáutica. A Comissão está subordinada diretamente ao comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do Ar, Juniti Saito.
O presidente da Comissão de Anistia vê com preocupação o fato de não haver o controle da sociedade civil.  Ele considera estranho também o fato de a portaria se referir à documentação produzida e arquivada pelo Comando da Aeronáutica.  “As Forças Armadas ainda não se submeteram integralmente ao poder civil. Há um ranço ideológico ao direcionar o monitoramento para a esquerda.”
 
Cuba na mira
A Ilha de Fidel sempre provocou calafrios na cervical dos homens de farda que comandaram o Brasil entre 1964 e 1985. O socialismo cubano era visto como elemento desestabilizador da ordem imposta pelos generais. Era visto... é força de expressão. Porque pelo que a reportagem da Caros Amigos apurou, Cuba continuou sendo motivo de preocupação entre os militares, também nos anos 90.
Documentos confidenciais, de setembro de 1991, comprovam que as Forças Armadas acompanharam os passos dos cubanos Roberto Garcia Robaiña, da União da Juventude Comunista (UJC), e Ana Maria Peñon Saez, da Organização Continental Latinoamericana de Estudantes (Oclae), desde o momento em que os dois desembarcaram, em 21 de setembro, no aeroporto internacional de Guarulhos, localizado na Grande São Paulo.
O nível de detalhamento do relatório produzido pelo serviço de espionagem chama a atenção. Descreve em minúcias, horários e locais por onde os dois passaram durante a estadia no país, registra suas intervenções. A documentação que revela o monitoramento dos ativistas apresenta grau de sofisticação superior aos demais relatórios encontrados pela reportagem. A espionagem feita contra os cubanos vem acompanhada, inclusive, por um “álbum” com oito fotografias.
Uma delas chama particularmente à atenção pela forma como foi obtida. Tirada por um agente, provavelmente, escondido no interior de um veículo, Robaiña aparece identificado, com o número 1 escrito à caneta, e Ana Maria, com o número 2. Além dos dois cubanos, uma terceira pessoa, que acompanhava o casal, também aparece na foto e é identificada no relatório. Os três estão na rua e carregam bolsas e pacotes.
Outras duas fotos do “álbum” também surpreendem. Aparentemente foram extraídas de câmeras filmadoras do circuito interno do aeroporto (confira as imagens em www.carosamigos.com.br). Robaiña é identificado em uma delas. Na outra, aparece Cristobal Pupo Telles, descrito pelos militares como membro da Embaixada Cubana.
O documento do serviço de espionagem afirma que Robaiña e Ana Maria deixaram o país, na noite do dia 27 de setembro, na companhia do compatriota Pupo Telles. “Às 22h30, Ana Maria, que portava passaporte diplomático, Pupo Telles e Robaiña embarcaram no vôo 820 Vasp, com destino a Aruba.”
A informação de que Ana Maria viajou com passaporte diplomático demonstra que o serviço de inteligência do Exército contava com apoio de agentes da Polícia Federal no aeroporto. O órgão era o responsável pela fiscalização do documento no momento de embarque dos passageiros com destinos internacionais.
 
Passo a passo
O relatório intitulado: Atividades de Roberto Garcia Robaiña e Ana Maria Peñon Saez é rico em minúcias. O serviço de espionagem se preocupa em fornecer o maior número possível de informações. A descrição dos horários é uma praxe no texto. Logo na abertura do relato, o agente afirma que os dois cubanos chegaram ao Brasil, às 19h45 do dia 21 de setembro, procedentes de Santiago do Chile.
“Na manhã seguinte, Robaiña e Ana Maria seguiram com destino a Santos/SP, onde chegaram às 11h30.” O serviço de espionagem informa que eles se dirigiram a um colégio onde se realizava o 7º Congresso da União Paulista de Estudantes Secundaristas (Upes). O agente infiltrado relata que ao terem os nomes anunciados, no local onde se realizava a plenária dos estudantes, os cubanos foram ovacionados aos gritos de solidariedade a Cuba.
“Dirigindo-se à platéia, Ana Maria agradeceu a acolhida, falou da importância da solidariedade prestada pela juventude brasileira à causa cubana e reafirmou a determinação do povo cubano na manutenção da ‘revolução cubana’ na Ilha. Às 12h30, o grupo deixou a cidade de Santos/SP, retornando para São Paulo.” O relato afirma que à tarde os ativistas visitaram um mutirão de moradias populares em Guaianazes, bairro da periferia da zona leste da capital paulista. O relatório informa, ainda, que à noite “às 21h, embarcaram no aeroporto de Congonhas, com destino ao Rio de Janeiro/RJ, no vôo 401 – TAM”, ressalta o espião.
No dia seguinte, 23 de setembro, o serviço de espionagem continuou seguindo os passos dos dois cubanos, agora no Estado do Rio de Janeiro. Segundo o relato, os ativistas foram ao município de Campos, onde foram recebidos pelo então prefeito Anthony Garotinho. “A Prefeitura de Campos/RJ vem firmando convênios com Havana.”
Às 9h do dia 24 de setembro teriam participado de uma entrevista na sede do jornal O Globo. Uma hora e meia depois participaram de uma audiência e, posteriormente, de um almoço com o então prefeito do Rio, Marcello Alencar. Leonel Brizola, então governador do Estado do Rio, recebeu os cubanos às 15h, em audiência. Às 18h, foram recebidos por Ivo Biasi Barbieri, então reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde também participaram de um debate no auditório 71 da instituição, às 19h. O serviço de espionagem informa que o evento contou com a presença de aproximadamente 300 pessoas.
Parte da intervenção do cubano também é relatada. “Roberto Robaiña iniciou seu discurso expondo as dificuldades pelas quais Cuba vêm passando após o desalinhamento com a URSS e a constante pressão do “imperialismo” norte-americano”, informa o texto do agente. O cubano investigado pelos militares se tornou ministro das Relações Exteriores de Fidel Castro, anos mais tarde.
A sessão solene em homenagem a amizade entre os povos brasileiro e cubano e pelo fim do bloqueio econômico a Cuba, realizada no dia 25 de setembro de 1991, na Câmara Municipal de São Paulo, que teve as presenças de Robaiña e Ana Maria, foi acompanhada de perto pelo Exército. O informe 00688-A/91/E.250, de 30 de setembro de 1991, apresenta carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste e traz o nome das pessoas que compuseram a mesa da solenidade, identificadas com as siglas DQJD ou SDQ.  Cinco fotografias registram o evento. Além de Robaiña e Ana Maria, outro identificado é o vereador da capital paulista Jamil Murad (PC do B), à época deputado estadual pelo partido. 
Assim como os demais documentos produzidos pelo Exército, esse também determina que as informações sejam difundidas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo. A origem do relatório é identificada como Outono, provavelmente o codinome do agente que acompanhou o evento.
 
 
 
Movimentos sociais foram vigiados por infiltrados da Polícia Civil de São Paulo
 
O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, também foi monitorado pelos espiões do órgão que sucedeu o Dops
 
Assim como as três Forças Armadas, o órgão que sucedeu o antigo Dops não abandonou os métodos empregados por seu antecessor. Os agentes da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo continuaram realizando o monitoramento de movimentos sociais na década de 90.
Relatórios encontrados por Caros Amigos no Arquivo Público do Estado de São Paulo revelam que os arapongas acompanharam manifestações, passeatas, assembléias sindicais, encontros de organizações políticas. O novo órgão deu atenção especial ao movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).  O agente responsável pelas duas universidades produzia geralmente três relatórios semanais descrevendo o que lia nos murais das faculdades.  A Associação dos Docentes da USP (Adusp) e o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) também foram monitorados pelo órgão.
Os espiões da Polícia Civil se identificavam em seus relatórios por um código alfa-númerico. Na esmagadora maioria dos casos, os infiltrados se apresentam como Gama e acrescentam um número, que os diferenciava. A reportagem identificou, no entanto, relatórios em que alguns agentes se identificavam como Quebec e Lince.
A reportagem da Caros Amigos localizou o delegado Ayrton Martini, responsável pelo Departamento de Comunicação Social ao qual estava subordinada a Divisão de Informações Sociais, que fazia essa espionagem. Ele negou que o órgão que dirigia realizasse esse tipo de ação. “Não, não, não. No meu tempo não tinha mais isso. Eu acho que deve estar havendo um engano. Não havia mais monitoramento. No tempo do Dops, sim. No meu tempo, não. Foi a re-de-mo-cra-ti-za-ção do país”, afirma cadenciando a palavra.
Hoje, ele está aposentado, mas além de exercer a direção do órgão de monitoramento, Martini conta que também atuou na Corregedoria e no Departamento de Polícia Científica. Caros Amigos também apurou que ele foi secretário de Segurança Pública em Mairiporã, município do interior de São Paulo, na gestão do PFL (Partido da Frente Liberal).
 
De olho na lupa
Os agentes subordinados a Martini monitoraram todo tipo de assembleia ou encontro de trabalhadores: bancários, médicos, aeroviários, lixeiros, aposentados, condutores, frentistas, jornalistas, metalúrgicos etc. etc. etc. Nada escapava da lupa desses agentes. As reuniões de organizações políticas também estiveram no alvo das investigações.
As passeatas do Fora Collor, é claro, também foram monitoradas. Caros Amigos teve acesso a um desses relatórios. Nele, o delegado Cesar Silva de Sousa informa ao delegado responsável pela operação, Enos Beolchi Jr, que a Operação Setembro, como era conhecida a ação, envolveu 33 policiais da DIS, seis da DCC e oito da assistência policial. Ainda de acordo com o relato do delegado, foram utilizadas sete viaturas no evento. “Nossos policiais recolheram vários panfletos durante a manifestação”, ressalta Sousa, que, hoje, é delegado no 14º Distrito Policial, em Pinheiros, zona oeste da capital paulista. O delegado Beolchi Jr., segundo informações da assessoria de imprensa da Delegacia Geral de Polícia, já faleceu.
 
Comunista
O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, é citado pelo menos em três relatórios de agentes. “Um dos incitadores à massa foi Jamil Murad”, afirmam os agentes Gama 16, 22, 38 e 50, no relatório 498/94, de 7 de dezembro de 1994. O relato descreve o comportamento do parlamentar durante ato contra o leilão de privatização da Embraer, que ocorreu no centro da capital paulista. O serviço de espionagem mandou para o local pelo menos quatro espiões.
Jamil também aparece no relatório 574/93, de 01 de outubro de 1993. Os infiltrados Gama 21 e Gama 29 acompanharam uma manifestação de aposentados no centro de São Paulo. No relatório, eles afirmam que o parlamentar “mencionou o ‘sucateamento’ das empresas estatais pelo governo federal e a intenção de privatização no sistema previdenciário”.
Os mesmos agentes também acompanharam uma passeata organizada pela CUT contra a revisão constitucional, em setembro de 1993. “Notamos a presença de 200 pessoas dentre militantes do Partido dos Trabalhadores, do Partido Comunista do Brasil, entre outros,” destaca o relatório 569/93, de 29 de setembro de 1993, desses agentes. Eles contam que houve distribuição de panfletos e falas contrárias à revisão constitucional e citam Jamil Murad, como um dos oradores.
O parlamentar ficou surpreso ao saber que foi monitorado pelo setor de inteligência do órgão que substituiu o Dops. “Eu não sabia que isso tinha acontecido. Para mim foi uma surpresa”, frisa Jamil Murad. “Aqui não houve um processo de ruptura com o passado, como ocorreu em Portugal após a Revolução dos Cravos. Lá as forças salazaristas foram varridas das instituições. No Brasil houve um longo processo de acomodação”, completa o vereador comunista.
 
Trotskista
As organizações Causa Operária e Convergência Socialista também foram monitoradas pelos espiões na década de 90. Na época, as duas eram tendências internas do PT. Rui Costa Pimenta e Anaí Caproni, que concorreram nas últimas eleições pelo Partido da Causa Operária (PCO) à Presidência da República e ao Governo do Estado de São Paulo, respectivamente, tiveram um curso de formação política da corrente política, que aconteceu em Mairiporã, monitorado.
Pelo menos dois agentes, Gama 23 e Gama 73, acompanharam esse curso. Os relatórios 01/90 e 12/90, ambos de 16 de junho de 1990 fornecem uma riqueza de detalhes sobre essa atividade. Até mesmo o alojamento onde os militantes se acomodaram é citado no texto. “Cada quarto continha de 4 a 6 beliches e um banheiro.” Horários de deslocamento dos dirigentes da organização também são ressaltados. O agente Gama 73 conclui seu relato afirmando que “os endereços dos militantes já foram fornecidos em relatórios anteriores”.
Uma das atividades da Convergência monitoradas chama a atenção. Gama 73, o mesmo agente que acompanhou o curso de formação da Causa Operária vigiou militantes da corrente política que apoiavam chapa oposicionista na eleição do Sindicato dos Metalúrgicos. Relatório sem número, de 22 de março de 1990, informa, por exemplo, que o espião acompanhou as panfletagens nas portas de fábricas desde às 6h15. O infiltrado fornece a placa do veículo em que os ativistas deixaram o local ao término da atividade. “Veraneio verde escura, placa RV 4251 – SP”. Ele também descreve o teor de conversas, além de informar o novo endereço e telefone da Convergência Socialista.
A Delegacia Geral de Polícia não quis comentar o assunto. Em nota, a assessoria de imprensa do órgão informou que “as questões referentes aos procedimentos devem ser feitas diretamente aos policiais que integravam a Polícia Civil de São Paulo na época em que os fatos teriam ocorrido”. A instituição nega que esse tipo de ação seja desenvolvido hoje. “A DGP esclarece também que todos os levantamentos e/ou monitoramentos, atualmente realizados pela entidade, têm natureza criminal. Ou seja, são iniciados a partir de algo que indique a existência de um crime”, diz a nota.
 
Lúcia Rodrigues é jornalista.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime « CartaCapital

Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime « CartaCapital

Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime

O leitor José Cláudio Souza Alves, sociólogo e pró-reitor de Extensão da UFRJ, contesta as avaliações que predominam sobre a onda de violência no Rio.

Nós que sabemos que o “inimigo é outro”, na expressão padilhesca, não podemos acreditar na farsa que a mídia e a estrutura de poder dominante no Rio querem nos empurrar.

Achar que as várias operações criminosas que vem se abatendo sobre a Região Metropolitana nos últimos dias, fazem parte de uma guerra entre o bem, representado pelas forças publicas de segurança, e o mal, personificado pelos traficantes, é ignorar que nem mesmo a ficção do Tropa de Elite 2 consegue sustentar tal versão.

O processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos 5 anos.

De um lado Milícias, aliadas a uma das facções criminosas, do outro a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia.

Exemplifico. Em Vigário Geral a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há 4 anos, o mesmo processo se deu. Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas favelas para a facção criminosa hegemônica.

Processos semelhantes a estes foram ocorrendo em várias favelas. Sabemos que as milícias não interromperam o tráfico de drogas, apenas o incluíram na listas dos seus negócios juntamente com gato net, transporte clandestino, distribuição de terras, venda de bujões de gás, venda de voto e venda de “segurança”.

Sabemos igualmente que as UPPs não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos. O tráfico passa a ser operado por outros grupos: milicianos, facção hegemônica ou mesmo a facção que agora tenta impedir sua derrocada, dependendo dos acordos.

Estes acordos passam por miríades de variáveis: grupos políticos hegemônicos na comunidade, acordos com associações de moradores, voto, montante de dinheiro destinado ao aparado que ocupa militarmente, etc.

Assim, ao invés de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Sadan Husein, e depois, viu a farsa da inexistência de nenhum dos motivos que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo?

Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As ações ocorrem no eixo ferroviário Central do Brasil e Leopoldina, expressão da compressão de uma das facções criminosas para fora da Zona Sul, que vem sendo saneada, ao menos na imagem, para as Olimpíadas.

Justificar massacres, como o de 2007, nas vésperas dos Jogos Pan Americanos, no complexo do Alemão, no qual ficou comprovada, pelo laudo da equipe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a existência de várias execuções sumárias é apenas uma cortina de fumaça que nos faz sustentar uma guerra ao terror em nome de um terror maior ainda, porque oculto e hegemônico.

Ônibus e carros queimados, com pouquíssimas vítimas, são expressões simbólicas do desagrado da facção que perde sua hegemonia buscando um novo acordo, que permita sua sobrevivência, afinal, eles não querem destruir a relação com o mercado que o sustenta.

A farsa da operação de guerra e seus inevitáveis mortos, muitos dos quais sem qualquer envolvimento com os blocos que disputam a hegemonia do crime no tabuleiro geopolítico do Grande Rio, serve apenas para nos fazer acreditar que ausência de conflitos é igual à paz e ausência de crime, sem perceber que a hegemonização do crime pela aliança de grupos criminosos, muitos diretamente envolvidos com o aparato policial, como a CPI das Milícias provou, perpetua nossa eterna desgraça: a de acreditar que o mal são os outros.

Deixamos de fazer assim as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas que permanecem operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas da execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos esquecemos que sua única finalidade é a hegemonia do mercado do crime no Rio de Janeiro?

Mas não se preocupem, quando restar o Iraque arrasado sempre surgirá o mercado financeiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade.

Sempre sobrará a massa arrebanhada pela lógica da guerra ao terror, reduzida a baixos níveis de escolaridade e de renda que, somadas à classe média em desespero, elegerão seus algozes e o aplaudirão no desfile de 7 de setembro, quando o caveirão e o Bope passarem.

* José Cláudio Souza Alves e sociólogo, Pró-reitor de Extensão da UFRRJ e autor do livro: Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Militares espionaram esquerda na década de 90


Militares espionaram esquerda na década de 90
 
Documentos confidenciais do Exército, Marinha e Aeronáutica localizados por Caros Amigos revelam que a espionagem política das Forças Armadas se manteve no período democrático, após o fim da ditadura militar. Aeronáutica afirma que faz isso até hoje
 
Por Lúcia Rodrigues
 
O DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), o centro de tortura mais temido pelos ativistas de esquerda no final dos anos 60 e na década de 70, pode até ter deixado de existir, mas os serviços de inteligência do Exército, da Marinha, Aeronáutica e das polícias Civil, Militar e Federal não foram extintos com a queda da ditadura.
Apesar de os arquivos da ditadura militar ainda não terem sido abertos, documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que as Forças Armadas continuaram agindo de maneira integrada na investigação da esquerda nos anos 90. Partidos políticos, movimentos sociais e até mesmo ativistas estrangeiros estiveram na mira dos agentes da repressão.
A reportagem da revista encontrou documentos  inéditos no meio de quase 20 mil documentos distribuídos em 454 pastas que repousam empilhadas nas prateleiras de aço do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Os relatórios da repressão estavam junto com os demais documentos do arquivo secreto da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo, órgão de inteligência que substituiu o antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no monitoramento político no período pós-redemocratização.
A documentação encontrada revela que além do monitoramento, havia também a troca de informações entre as três Forças Armadas e as polícias Civil, Militar e Federal. Esse compartilhamento de informações entre as Forças Armadas e os órgãos policiais foi o que possibilitou o encontro desses documentos confidenciais e que estavam sob a guarda do setor de espionagem da Polícia Civil de São Paulo.  Em 1999 veio à tona que o órgão que sucedeu o Dops mantinha o monitoramento político. O material foi repassado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, mas só foi disponibilizado para a consulta pública em fevereiro deste ano. (Confira a reprodução da primeira página de alguns dos documentos secretos encontrados pela reportagem da Caros Amigos em www.carosamigos.com.br).
Apesar de conter elementos cruciais que revelam o modo de agir do setor de espionagem militar no monitoramento à esquerda brasileira e internacional, a documentação é apenas uma pontinha no imenso iceberg que poderá ser revelado quando os arquivos da repressão forem de fato abertos. Nem tudo foi repassado. É possível verificar hiatos temporais significativos no acervo da espionagem do pós-Dops.
 
Sindicalismo
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central sindical do país, foi investigada pelo Exército, pela Marinha e Aeronáutica nos anos 90. Relatórios confidências das três Forças Armadas revelam a preocupação dos militares com a atuação da CUT.
O informe do Exército 247/91, de 26 de setembro de 1991, relata a decisão da Central de disputar a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), tomada durante o 4º congresso da entidade. “Essa decisão coloca em jogo a luta pela liderança de três mil sindicatos e vinte e duas federações da categoria”, alerta o agente, que aproveita para informar que durante o congresso “os trabalhadores rurais realizaram um ato de protesto contra a violência no campo e a concentração de terras no Brasil.”
O relato evidencia um claro viés ideológico na investigação. O responsável pelo texto sobre a CUT utiliza aspas quando se refere ao golpe militar. “AVELINO GANZER, membro da Executiva Nacional da CUT e ex-presidente do Sindicato Rural (sic) de Santarém/PA, lembrou as últimas estatísticas das mortes no campo. Destacou que do “golpe militar” até hoje foram registradas 1.630 mortes em conflito por terra e, dos 24 processos concluídos, apenas três mandantes foram condenados.” O relatório traz ainda parte do discurso de Ganzer. “Dramaticamente, nos últimos cinco anos, 53 dirigentes foram mortos em aproximadamente 687 conflitos, finalizou”, ressalta o araponga.
O documento informa que o relatório deve ser repassado para a Comissão Naval, o IV Comar (Comando Aéreo Regional), a Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo. No informe consta ainda que essas informações partiram do 4º BIB (Batalhão de Infantaria Blindado) do Exército. A difusão anterior também é informada. Foi feita pelo Comando Militar do Sudeste, órgão que substituiu, no período democrático, o II Exército ao qual estava subordinado o DOI-Codi
Já a Marinha em seu informe 0130/20/1991, de 25 de setembro de 1991, discorre sobre o Suplemento nº 28 do Departamento de Estudos Socioeconômicos e Políticos (Desep), da CUT. “O SUPLEMENTO, que tem o apoio da CUT Estadual de São Paulo, reúne textos e análises sobre a conjuntura e as tendências do movimento sindical, tem como objetivo principal a elaboração de análises, estudos e pesquisas para subsidiar a atuação da CUT e para estimular o debate e a crítica sobre a evolução das lutas sindicais”, afirma o texto.
O nome dos membros que compõem a Direção Executiva do Desep, sua coordenação e equipe constam desse informe. À época o Desep era chefiado pelo metalúrgico Oswaldo Bargas, que viria a ocupar o cargo de secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego no primeiro mandato do presidente Lula.
A força naval anexa às informações cópia do Suplemento, para que seja compartilhada com o Comando do 1º Distrito Naval, localizado no Rio de Janeiro, Comando Militar do Sudeste (Exército), IV Comar (Aeronáutica), a Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal no Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Policial Civil de São Paulo, Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Essa investigação, segundo informações contidas no relatório, partiu da Comissão Naval em São Paulo.
O comunicado 008/A-2/IV Comar, de 02 de outubro de 1991, da Aeronáutica trata das teses do 6º Congresso Estadual da CUT São Paulo e da programação do Seminário Internacional sobre Socialismo que aconteceria no Instituto Cajamar, instituição ligada ao Partido dos Trabalhadores. “Remetemos para conhecimento as cópias xerox constantes do anexo.” A origem das informações, segundo o relatório, é da Embraer, a empresa da aeronáutica que fabrica aviões. Assim como o Exército e a Marinha, a Aeronáutica  compartilha suas informações. O Comando Militar do Sudeste, a Comissão Naval em São Paulo, o Departamento da Polícia Federal em São Paulo, a Polícia Militar de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social e o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de São Paulo constam como órgãos para os quais o informe deve ser repassado. Envio de publicações sindicais é o título do comunicado encaminhado pela Aeronáutica.
Os relatórios das três Forças Armadas vêm acompanhados, sempre, por carimbos de confidencial e de fichar e arquivar. O da Aeronáutica tem ainda o carimbo do Ministério da Aeronáutica – IV Comar - 2ª Seção, o da Marinha, o da Comissão Naval em São Paulo; o do Exército apresenta carimbo da 2ª Seção da 2ª Divisão do EMG (Estado Maior Geral). Os documentos do Exército e da Aeronáutica vêm acompanhados ainda por outro carimbo, que informa: “o destinatário é o responsável pela manutenção do sigilo deste documento (art. 12 do RSAS – Dec. 79.099 de 05 JAN 77)”.  Trata-se do Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos fixado durante a ditadura militar.
A atuação da Corrente Sindical Classista (CSC), ligada ao PC do B, também foi monitorada pelo Exército no 4º Congresso Nacional da CUT. “A CORRENTE SINDICAL CLASSISTA (CSC) composta por sindicalistas do PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) participou do IV CONGRESSO DA CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (IV CONCUT), realizado em SÃO PAULO/CAPITAL), no período de 04 a 08 SET 91, com uma delegação de cerca de 213 representantes eleitos em quase todos os estados do País.”
O relato de 30 de setembro de 1991 e que teve origem no Comando Militar do Sudeste, informa ainda que o número de delegados da CSC presentes ao congresso permitiu à entidade se tornar a terceira força na entidade, atrás apenas da Articulação e da CUT pela Base.  “Este fato foi muito comemorado por militantes do Partido como altamente positivo considerando que, a CSC foi fundada a menos de 3 anos e filiou-se à CUT há pouco mais de 1 ano (MAR 90)... Conseguiu, ainda, eleger ALOISIO SÉRGIO ROCHA BARROSO, coordenador nacional da CSC e ANTONIO RENILDO SANTANA DE SOUZA para membros da Direção Nacional da CUT.”
Os militares também se preocupavam em produzir relatórios mensais intitulados Panorama Mensal do Movimento Sindical. Esses relatos faziam uma análise das atividades sindicais que se desenvolviam ao longo do mês. Caros Amigos encontrou dois desses relatórios. Eles não estão com o timbre de nenhuma das Forças Armadas, embora sejam redigidos no mesmo tipo de papel (textura, coloração, tamanho). A primeira e a última página aparecem cortadas, uma tinta preta parecida com a de um pincel atômico esconde provavelmente a origem do material.
 
Partidos Políticos
Além da CUT, os documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que o Exército também monitorou o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B).  A Convergência Socialista, organização trotskista que deu origem ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), em 1994, também foi investigada.
No caso do PT, os encontros municipais e zonais do partido e o encontro de seus vereadores constam dos relatórios de monitoramento do Exército. O informe 681 – D.6/E.250/91, de 30 de setembro de 1991, trata do encontro dos parlamentares. “O referido encontro teve como principal meta a preparação dos edis petistas para as discussões do plano diretor e da política orçamentária dos respectivos municípios, segundo as diretrizes do partido. Os políticos petistas também debateram sobre o papel do PT na luta institucional, assim como o posicionamento do partido frente ao parlamento”, enfatiza o texto.
O relatório 00683 – D.6/e.250/91, de 30 de setembro de 1991, sobre os encontros do partido destaca que “o principal objetivo dos eventos visa propiciar aos Diretórios Municipais e Zonais, a escolha dos delegados e observadores, assim como a discussão dos participantes dos temas que serão debatidos no Congresso petista, previsto para o período de 27 NOV à (sic) 01 DEZ 91, nas dependências do PAVILHÃO VERA CRUZ, no município de SÃO BERNARDO/ SP”.
Ambos os documentos são datados de 30 de setembro de 1991 e têm como origem o Comando Militar do Sudeste. A ordem é para que as informações sejam repassadas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo.
Um ciclo de debates promovido pelo PC do B sobre problemas do socialismo e a situação mundial também foi monitorado pelo Comando Militar do Sudeste. O informe 00678/B91-E.250, de 26 de setembro de 1991, explica que “o PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) objetivando aprofundar a discussão sobre os temas relevantes da Tese inicial para o seu 8º CONGRESSO NACIONAL, previsto para JAN 92, promoveu e realizará um CICLO DE DEBATES no período de 05 SET A 24 out 91, todas as quintas-feiras, no salão PEDROSO HORA da CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO.  Os debates terão como tema básico “PROBLEMAS DO SOCIALISMO E SITUAÇÃO MUNDIAL”.  O agente fornece os nomes dos debatedores e a programação do ciclo organizado pelos comunistas.
O documento deve ser difundido para os mesmos órgãos que os indicados para os informes relativos ao PT. Tanto os documentos referentes ao PT quanto os do PC do B possuem carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste.
O informe de 19 de novembro de 1991 sobre a Convergência Socialista é o único em que não aparece como origem o Comando Militar do Sudeste. No espaço reservado a essa identificação consta a palavra Lotus, provavelmente o codinome do agente que acompanhou a reunião do Comitê Central da organização, que ocorreu em São Paulo nos dias 15, 16 e 17 de novembro. A Convergência era à época uma tendência interna do PT.
O relato de sete páginas é rico em detalhes, afirma, por exemplo, que a corrente política pretendia formar a Frente Única Revolucionária. “Foi apresentado um informe sobre os grupos com os quais a organização vem mantendo contatos e reuniões objetivando a formação da Frente Única Revolucionária (FUR), parte de sua tática de organização de um novo partido”. Além dos tradicionais carimbos de confidencial e de fichar e arquivar aparece escrito à mão a tipologia em que o documento deveria ser catalogado: Frente Única Revolucionária.
Segundo o espião, a Convergência Socialista mantinha conversações com o Partido da Libertação Proletária (PLP) para a formação do novo partido. O texto revela que a Convergência queria manter o assunto em sigilo porque a discussão ainda era interna e, portanto, deveria ser mantida preferencialmente na cúpula das duas organizações.
Lotus ressalta que “foi ainda apresentado um relatório sobre as reuniões realizadas com outros grupos”. Os nomes dos dirigentes dos grupos com os quais a Convergência estaria conversando, para a consolidação da FUR aparecem acompanhados pelas siglas DQJD ou SDQ. Caros Amigos consultou várias pessoas, inclusive militares perseguidos pela ditadura para saber o que as siglas significam, mas ninguém soube responder.
 
Forças Armadas
A reportagem entrou em contato com os comandantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica, para que se manifestassem a respeito do monitoramento realizado na década de 90 pelas respectivas Forças, mas nenhum deles aceitou conversar com Caros Amigos.
Em nota, o Centro de Comunicação Social da Aeronáutica reconheceu que a instituição faz o monitoramento e compartilha as informações com os demais órgãos. O texto enviado pela comunicação da Aeronáutica afirma, ainda, que esse compartilhamento é componente doutrinário dos órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência.
“O Centro de Comunicação Social da Aeronáutica informa que o comunicado nº. 008/A-2/IV COMAR, de 02 de outubro de 1991, é oriundo da 2º Seção do IV Comando Aéreo Regional, que constituía, à época, o elo sistêmico da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal.
Assim como em 1991 o compartilhamento de informações faz parte, doutrinariamente, do cotidiano dos órgãos que compõem o atual Sistema Brasileiro de Inteligência.
Cabe destacar que eventos de qualquer natureza, envolvendo aglomerações urbanas, são normalmente acompanhados por órgãos de segurança civis e/ou militares.”
A nota enviada pela Marinha é assinada pelo contra-almirante Paulo Mauricio Farias Alves. O militar informa que o órgão não se posicionará a respeito. “Em procedimento investigatório realizado, não foi encontrado o documento referenciado em seu pedido. Em decorrência dessa inexistência, não é possível responder os dados requeridos.”
A assessoria de comunicação do Exército também não respondeu aos questionamentos. “Sobre um pedido de entrevista com o Comandante do Exército, a respeito de documentos sigilosos, o Centro de Comunicação Social do Exército informa o que se segue: o Comandante do Exército não concederá a entrevista solicitada”, frisa a nota encaminhada.
Caros Amigos também procurou o Ministério da Defesa para que o ministro Nelson Jobim se posicionasse sobre a espionagem realizada pelas três Forças Armadas, mas a assessoria de imprensa do Ministério informou que ele não se pronunciaria sobre essa questão.
 
Os investigados
Para o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos, o Estado brasileiro precisa avançar muito para que a sociedade se torne realmente democrática. “Mesmo após a redemocratização do país há um conjunto de documentos que demonstram que parte dessa estrutura de perseguição e monitoramento continuou. É um absurdo. Deveria ter sido enterrado com o fim da ditadura. Espero que, hoje, isso não esteja acontecendo”, critica.
O sindicalista explica que a década de 90 foi marcada pela tentativa de criminalização dos movimentos sociais e do movimento sindical, em particular. “Não chega a causar surpresa”, afirma ao se referir ao monitoramento que a CUT sofreu por parte das três Forças Armadas. “Sempre viram o movimento sindical como uma possibilidade de perda do controle.”
A deputada federal Iriny Lopes (PT-ES) quer a punição dos responsáveis pelo monitoramento praticado pelas Forças Armadas. “É um ato de violação de direitos, uma violação à Constituição, um desrespeito ao Estado de direito. Quem dirigiu, quem autorizou, quem conduziu essas operações cometeu um ato ilegal, inconstitucional. Os responsáveis devem ser exemplarmente punidos, para que isso não se repita.”
Iriny, que integra a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, destaca que esse tipo de ação de espionagem foi feita ao arrepio da lei.  “Faz parte de um pensamento atrasado e policialesco. Demonstra que parcelas das Forças Armadas e do sistema de segurança mantiveram a mesma visão do tempo da ditadura. Revela uma arbitrariedade, uma flagrante inconstitucionalidade, uma flagrante ilegalidade. É um absurdo. Repudio veemente um comportamento dessa natureza”, frisa a petista.
A parlamentar alerta que aqueles que tiveram sua privacidade devassada podem acionar o Estado. “Eles (militares) monitoraram ilegalmente, catalogaram, perseguiram ideologicamente. A legislação permite que as pessoas que foram violadas tomem medidas legais para a reparação desse tipo de ilegalidade.”
O monitoramento dos comunistas pelas Forças Armadas não causa espanto no presidente do PC do B, Renato Rabelo. Mas o dirigente se surpreende, no entanto, com o período em que isso ocorreu.  “Mesmo com o fim do regime militar, as Forças Armadas mantiveram o serviço de inteligência voltado a vigiar e acompanhar os movimentos sociais. Isso para mim não é novidade. Mas a gente não sabia que isso foi feito na década de 90. Pensei que fosse só até ao final da década de 80. No começo dos anos 80 invadiram várias casas, inclusive, a minha, levaram meus livros, documentos”, revela.
O PC do B foi uma das organizações duramente atacadas pelos militares durante a ditadura. O partido teve seu Comitê Central praticamente dizimado no episódio que ficou conhecido como o massacre da Lapa, em 1976, quando os dirigentes Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram fuzilados por militares do Exército e João Baptista Franco Drummond assassinado sob tortura no DOI-Codi paulista. Na primeira metade da década 70, o PC do B já havia sofrido um dos piores golpes impostos pelos militares, quando os guerrilheiros que atuavam no Araguaia foram executados pelas forças da repressão.
Assim como a deputada Iriny, o dirigente comunista enfatiza o fato de os militares realizarem esse tipo de monitoramento à revelia da lei. “As Forças Armadas não têm o preceito constitucional para vigiar o povo. É uma excrescência, um absurdo.” Ele também questiona a envergadura do aparato montado para espionar a esquerda. “Têm uma estrutura enorme para fazer esse trabalho de investigação. Eu não sei como isso vem se desenvolvendo de lá pra cá, se mantém esse tipo de serviço secreto”, questiona.
"Os movimentos sociais e os partidos políticos que não aceitam a ordem vigente são monitorados", afirma o presidente do PSTU e ex-candidato a presidente da República, José Maria de Almeida, o Zé Maria. "A democracia representativa é um mito. O Estado tem lado, é capitalista e monitora qualquer agrupamento que possa vir a representar algum perigo para a manutenção do status quo. Pode ter sido infiltrado ou serviço de escuta", ressalta ao se referir à espionagem que a Convergência sofreu.
As Forças Armadas devem uma satisfação à sociedade brasileira sobre a espionagem praticada, segundo o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abraão. “Isso caracteriza monitoramento ilegal. O monitoramento só pode ocorrer com autorização judicial”, enfatiza Paulo Abraão, que também é advogado.
Para ele, o não afastamento dos agentes, que serviram ao regime militar, de seus cargos após a redemocratização e a ausência de uma profunda reforma nas Forças Armadas permitem que situações como as identificadas pela reportagem da Caros Amigos aconteçam. “Na Argentina houve o afastamento das pessoas que participaram de funções gerenciais durante a ditadura militar, houve um processo de depuração. Aqui isso nunca aconteceu.”
Paulo Abraão questiona o termo “doutrinariamente” utilizado pela Aeronáutica na nota enviada a Caros Amigos. “As palavras têm força, têm um simbolismo muito grande. A que tipo de doutrinamento se refere? Àquele do regime militar que não respeitava os direitos fundamentais?”, indaga.
Curiosamente o Comando da Aeronáutica publicou portaria, no dia 23 de agosto, instituindo uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos Sigilosos do Comando da Aeronáutica. A Comissão está subordinada diretamente ao comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do Ar, Juniti Saito.
O presidente da Comissão de Anistia vê com preocupação o fato de não haver o controle da sociedade civil.  Ele considera estranho também o fato de a portaria se referir à documentação produzida e arquivada pelo Comando da Aeronáutica.  “As Forças Armadas ainda não se submeteram integralmente ao poder civil. Há um ranço ideológico ao direcionar o monitoramento para a esquerda.”
 
Cuba na mira
A Ilha de Fidel sempre provocou calafrios na cervical dos homens de farda que comandaram o Brasil entre 1964 e 1985. O socialismo cubano era visto como elemento desestabilizador da ordem imposta pelos generais. Era visto... é força de expressão. Porque pelo que a reportagem da Caros Amigos apurou, Cuba continuou sendo motivo de preocupação entre os militares, também nos anos 90.
Documentos confidenciais, de setembro de 1991, comprovam que as Forças Armadas acompanharam os passos dos cubanos Roberto Garcia Robaiña, da União da Juventude Comunista (UJC), e Ana Maria Peñon Saez, da Organização Continental Latinoamericana de Estudantes (Oclae), desde o momento em que os dois desembarcaram, em 21 de setembro, no aeroporto internacional de Guarulhos, localizado na Grande São Paulo.
O nível de detalhamento do relatório produzido pelo serviço de espionagem chama a atenção. Descreve em minúcias, horários e locais por onde os dois passaram durante a estadia no país, registra suas intervenções. A documentação que revela o monitoramento dos ativistas apresenta grau de sofisticação superior aos demais relatórios encontrados pela reportagem. A espionagem feita contra os cubanos vem acompanhada, inclusive, por um “álbum” com oito fotografias.
Uma delas chama particularmente à atenção pela forma como foi obtida. Tirada por um agente, provavelmente, escondido no interior de um veículo, Robaiña aparece identificado, com o número 1 escrito à caneta, e Ana Maria, com o número 2. Além dos dois cubanos, uma terceira pessoa, que acompanhava o casal, também aparece na foto e é identificada no relatório. Os três estão na rua e carregam bolsas e pacotes.
Outras duas fotos do “álbum” também surpreendem. Aparentemente foram extraídas de câmeras filmadoras do circuito interno do aeroporto (confira as imagens em www.carosamigos.com.br). Robaiña é identificado em uma delas. Na outra, aparece Cristobal Pupo Telles, descrito pelos militares como membro da Embaixada Cubana.
O documento do serviço de espionagem afirma que Robaiña e Ana Maria deixaram o país, na noite do dia 27 de setembro, na companhia do compatriota Pupo Telles. “Às 22h30, Ana Maria, que portava passaporte diplomático, Pupo Telles e Robaiña embarcaram no vôo 820 Vasp, com destino a Aruba.”
A informação de que Ana Maria viajou com passaporte diplomático demonstra que o serviço de inteligência do Exército contava com apoio de agentes da Polícia Federal no aeroporto. O órgão era o responsável pela fiscalização do documento no momento de embarque dos passageiros com destinos internacionais.
 
Passo a passo
O relatório intitulado: Atividades de Roberto Garcia Robaiña e Ana Maria Peñon Saez é rico em minúcias. O serviço de espionagem se preocupa em fornecer o maior número possível de informações. A descrição dos horários é uma praxe no texto. Logo na abertura do relato, o agente afirma que os dois cubanos chegaram ao Brasil, às 19h45 do dia 21 de setembro, procedentes de Santiago do Chile.
“Na manhã seguinte, Robaiña e Ana Maria seguiram com destino a Santos/SP, onde chegaram às 11h30.” O serviço de espionagem informa que eles se dirigiram a um colégio onde se realizava o 7º Congresso da União Paulista de Estudantes Secundaristas (Upes). O agente infiltrado relata que ao terem os nomes anunciados, no local onde se realizava a plenária dos estudantes, os cubanos foram ovacionados aos gritos de solidariedade a Cuba.
“Dirigindo-se à platéia, Ana Maria agradeceu a acolhida, falou da importância da solidariedade prestada pela juventude brasileira à causa cubana e reafirmou a determinação do povo cubano na manutenção da ‘revolução cubana’ na Ilha. Às 12h30, o grupo deixou a cidade de Santos/SP, retornando para São Paulo.” O relato afirma que à tarde os ativistas visitaram um mutirão de moradias populares em Guaianazes, bairro da periferia da zona leste da capital paulista. O relatório informa, ainda, que à noite “às 21h, embarcaram no aeroporto de Congonhas, com destino ao Rio de Janeiro/RJ, no vôo 401 – TAM”, ressalta o espião.
No dia seguinte, 23 de setembro, o serviço de espionagem continuou seguindo os passos dos dois cubanos, agora no Estado do Rio de Janeiro. Segundo o relato, os ativistas foram ao município de Campos, onde foram recebidos pelo então prefeito Anthony Garotinho. “A Prefeitura de Campos/RJ vem firmando convênios com Havana.”
Às 9h do dia 24 de setembro teriam participado de uma entrevista na sede do jornal O Globo. Uma hora e meia depois participaram de uma audiência e, posteriormente, de um almoço com o então prefeito do Rio, Marcello Alencar. Leonel Brizola, então governador do Estado do Rio, recebeu os cubanos às 15h, em audiência. Às 18h, foram recebidos por Ivo Biasi Barbieri, então reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde também participaram de um debate no auditório 71 da instituição, às 19h. O serviço de espionagem informa que o evento contou com a presença de aproximadamente 300 pessoas.
Parte da intervenção do cubano também é relatada. “Roberto Robaiña iniciou seu discurso expondo as dificuldades pelas quais Cuba vêm passando após o desalinhamento com a URSS e a constante pressão do “imperialismo” norte-americano”, informa o texto do agente. O cubano investigado pelos militares se tornou ministro das Relações Exteriores de Fidel Castro, anos mais tarde.
A sessão solene em homenagem a amizade entre os povos brasileiro e cubano e pelo fim do bloqueio econômico a Cuba, realizada no dia 25 de setembro de 1991, na Câmara Municipal de São Paulo, que teve as presenças de Robaiña e Ana Maria, foi acompanhada de perto pelo Exército. O informe 00688-A/91/E.250, de 30 de setembro de 1991, apresenta carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste e traz o nome das pessoas que compuseram a mesa da solenidade, identificadas com as siglas DQJD ou SDQ.  Cinco fotografias registram o evento. Além de Robaiña e Ana Maria, outro identificado é o vereador da capital paulista Jamil Murad (PC do B), à época deputado estadual pelo partido. 
Assim como os demais documentos produzidos pelo Exército, esse também determina que as informações sejam difundidas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo. A origem do relatório é identificada como Outono, provavelmente o codinome do agente que acompanhou o evento.
 
 
 
Movimentos sociais foram vigiados por infiltrados da Polícia Civil de São Paulo
 
O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, também foi monitorado pelos espiões do órgão que sucedeu o Dops
 
Assim como as três Forças Armadas, o órgão que sucedeu o antigo Dops não abandonou os métodos empregados por seu antecessor. Os agentes da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo continuaram realizando o monitoramento de movimentos sociais na década de 90.
Relatórios encontrados por Caros Amigos no Arquivo Público do Estado de São Paulo revelam que os arapongas acompanharam manifestações, passeatas, assembléias sindicais, encontros de organizações políticas. O novo órgão deu atenção especial ao movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).  O agente responsável pelas duas universidades produzia geralmente três relatórios semanais descrevendo o que lia nos murais das faculdades.  A Associação dos Docentes da USP (Adusp) e o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) também foram monitorados pelo órgão.
Os espiões da Polícia Civil se identificavam em seus relatórios por um código alfa-númerico. Na esmagadora maioria dos casos, os infiltrados se apresentam como Gama e acrescentam um número, que os diferenciava. A reportagem identificou, no entanto, relatórios em que alguns agentes se identificavam como Quebec e Lince.
A reportagem da Caros Amigos localizou o delegado Ayrton Martini, responsável pelo Departamento de Comunicação Social ao qual estava subordinada a Divisão de Informações Sociais, que fazia essa espionagem. Ele negou que o órgão que dirigia realizasse esse tipo de ação. “Não, não, não. No meu tempo não tinha mais isso. Eu acho que deve estar havendo um engano. Não havia mais monitoramento. No tempo do Dops, sim. No meu tempo, não. Foi a re-de-mo-cra-ti-za-ção do país”, afirma cadenciando a palavra.
Hoje, ele está aposentado, mas além de exercer a direção do órgão de monitoramento, Martini conta que também atuou na Corregedoria e no Departamento de Polícia Científica. Caros Amigos também apurou que ele foi secretário de Segurança Pública em Mairiporã, município do interior de São Paulo, na gestão do PFL (Partido da Frente Liberal).
 
De olho na lupa
Os agentes subordinados a Martini monitoraram todo tipo de assembleia ou encontro de trabalhadores: bancários, médicos, aeroviários, lixeiros, aposentados, condutores, frentistas, jornalistas, metalúrgicos etc. etc. etc. Nada escapava da lupa desses agentes. As reuniões de organizações políticas também estiveram no alvo das investigações.
As passeatas do Fora Collor, é claro, também foram monitoradas. Caros Amigos teve acesso a um desses relatórios. Nele, o delegado Cesar Silva de Sousa informa ao delegado responsável pela operação, Enos Beolchi Jr, que a Operação Setembro, como era conhecida a ação, envolveu 33 policiais da DIS, seis da DCC e oito da assistência policial. Ainda de acordo com o relato do delegado, foram utilizadas sete viaturas no evento. “Nossos policiais recolheram vários panfletos durante a manifestação”, ressalta Sousa, que, hoje, é delegado no 14º Distrito Policial, em Pinheiros, zona oeste da capital paulista. O delegado Beolchi Jr., segundo informações da assessoria de imprensa da Delegacia Geral de Polícia, já faleceu.
 
Comunista
O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, é citado pelo menos em três relatórios de agentes. “Um dos incitadores à massa foi Jamil Murad”, afirmam os agentes Gama 16, 22, 38 e 50, no relatório 498/94, de 7 de dezembro de 1994. O relato descreve o comportamento do parlamentar durante ato contra o leilão de privatização da Embraer, que ocorreu no centro da capital paulista. O serviço de espionagem mandou para o local pelo menos quatro espiões.
Jamil também aparece no relatório 574/93, de 01 de outubro de 1993. Os infiltrados Gama 21 e Gama 29 acompanharam uma manifestação de aposentados no centro de São Paulo. No relatório, eles afirmam que o parlamentar “mencionou o ‘sucateamento’ das empresas estatais pelo governo federal e a intenção de privatização no sistema previdenciário”.
Os mesmos agentes também acompanharam uma passeata organizada pela CUT contra a revisão constitucional, em setembro de 1993. “Notamos a presença de 200 pessoas dentre militantes do Partido dos Trabalhadores, do Partido Comunista do Brasil, entre outros,” destaca o relatório 569/93, de 29 de setembro de 1993, desses agentes. Eles contam que houve distribuição de panfletos e falas contrárias à revisão constitucional e citam Jamil Murad, como um dos oradores.
O parlamentar ficou surpreso ao saber que foi monitorado pelo setor de inteligência do órgão que substituiu o Dops. “Eu não sabia que isso tinha acontecido. Para mim foi uma surpresa”, frisa Jamil Murad. “Aqui não houve um processo de ruptura com o passado, como ocorreu em Portugal após a Revolução dos Cravos. Lá as forças salazaristas foram varridas das instituições. No Brasil houve um longo processo de acomodação”, completa o vereador comunista.
 
Trotskista
As organizações Causa Operária e Convergência Socialista também foram monitoradas pelos espiões na década de 90. Na época, as duas eram tendências internas do PT. Rui Costa Pimenta e Anaí Caproni, que concorreram nas últimas eleições pelo Partido da Causa Operária (PCO) à Presidência da República e ao Governo do Estado de São Paulo, respectivamente, tiveram um curso de formação política da corrente política, que aconteceu em Mairiporã, monitorado.
Pelo menos dois agentes, Gama 23 e Gama 73, acompanharam esse curso. Os relatórios 01/90 e 12/90, ambos de 16 de junho de 1990 fornecem uma riqueza de detalhes sobre essa atividade. Até mesmo o alojamento onde os militantes se acomodaram é citado no texto. “Cada quarto continha de 4 a 6 beliches e um banheiro.” Horários de deslocamento dos dirigentes da organização também são ressaltados. O agente Gama 73 conclui seu relato afirmando que “os endereços dos militantes já foram fornecidos em relatórios anteriores”.
Uma das atividades da Convergência monitoradas chama a atenção. Gama 73, o mesmo agente que acompanhou o curso de formação da Causa Operária vigiou militantes da corrente política que apoiavam chapa oposicionista na eleição do Sindicato dos Metalúrgicos. Relatório sem número, de 22 de março de 1990, informa, por exemplo, que o espião acompanhou as panfletagens nas portas de fábricas desde às 6h15. O infiltrado fornece a placa do veículo em que os ativistas deixaram o local ao término da atividade. “Veraneio verde escura, placa RV 4251 – SP”. Ele também descreve o teor de conversas, além de informar o novo endereço e telefone da Convergência Socialista.
A Delegacia Geral de Polícia não quis comentar o assunto. Em nota, a assessoria de imprensa do órgão informou que “as questões referentes aos procedimentos devem ser feitas diretamente aos policiais que integravam a Polícia Civil de São Paulo na época em que os fatos teriam ocorrido”. A instituição nega que esse tipo de ação seja desenvolvido hoje. “A DGP esclarece também que todos os levantamentos e/ou monitoramentos, atualmente realizados pela entidade, têm natureza criminal. Ou seja, são iniciados a partir de algo que indique a existência de um crime”, diz a nota.
 
Lúcia Rodrigues é jornalista.

Shellen Baptista Galdino
Centro Acadêmico de Serviço Social - UFPB

“Os poderosos podem matar uma,
duas ou até três rosas,
mas jamais poderão deter a primavera.”
 Che Guevara
Para ENESSO R2, ENESSO, CASS UFPB, Serviço Social Noite 2010, Serviço Social UFCG, Jymson FAFIC
Pra ninguem pensar que é brincadeira ou paranóia. O texto é grande mas vale a pena ler.


 
 
Militares espionaram esquerda na década de 90
 
Documentos confidenciais do Exército, Marinha e Aeronáutica localizados por Caros Amigosrevelam que a espionagem política das Forças Armadas se manteve no período democrático, após o fim da ditadura militar. Aeronáutica afirma que faz isso até hoje
 
Por Lúcia Rodrigues
 
O DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), o centro de tortura mais temido pelos ativistas de esquerda no final dos anos 60 e na década de 70, pode até ter deixado de existir, mas os serviços de inteligência do Exército, da Marinha, Aeronáutica e das polícias Civil, Militar e Federal não foram extintos com a queda da ditadura.
Apesar de os arquivos da ditadura militar ainda não terem sido abertos, documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que as Forças Armadas continuaram agindo de maneira integrada na investigação da esquerda nos anos 90. Partidos políticos, movimentos sociais e até mesmo ativistas estrangeiros estiveram na mira dos agentes da repressão.
A reportagem da revista encontrou documentos  inéditos no meio de quase 20 mil documentos distribuídos em 454 pastas que repousam empilhadas nas prateleiras de aço do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Os relatórios da repressão estavam junto com os demais documentos do arquivo secreto da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo, órgão de inteligência que substituiu o antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no monitoramento político no período pós-redemocratização.
A documentação encontrada revela que além do monitoramento, havia também a troca de informações entre as três Forças Armadas e as polícias Civil, Militar e Federal. Esse compartilhamento de informações entre as Forças Armadas e os órgãos policiais foi o que possibilitou o encontro desses documentos confidenciais e que estavam sob a guarda do setor de espionagem da Polícia Civil de São Paulo.  Em 1999 veio à tona que o órgão que sucedeu o Dops mantinha o monitoramento político. O material foi repassado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, mas só foi disponibilizado para a consulta pública em fevereiro deste ano. (Confira a reprodução da primeira página de alguns dos documentos secretos encontrados pela reportagem da Caros Amigos em www.carosamigos.com.br).
Apesar de conter elementos cruciais que revelam o modo de agir do setor de espionagem militar no monitoramento à esquerda brasileira e internacional, a documentação é apenas uma pontinha no imenso iceberg que poderá ser revelado quando os arquivos da repressão forem de fato abertos. Nem tudo foi repassado. É possível verificar hiatos temporais significativos no acervo da espionagem do pós-Dops.
 
Sindicalismo
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central sindical do país, foi investigada pelo Exército, pela Marinha e Aeronáutica nos anos 90. Relatórios confidências das três Forças Armadas revelam a preocupação dos militares com a atuação da CUT.
O informe do Exército 247/91, de 26 de setembro de 1991, relata a decisão da Central de disputar a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), tomada durante o 4º congresso da entidade. “Essa decisão coloca em jogo a luta pela liderança de três mil sindicatos e vinte e duas federações da categoria”, alerta o agente, que aproveita para informar que durante o congresso “os trabalhadores rurais realizaram um ato de protesto contra a violência no campo e a concentração de terras no Brasil.”
O relato evidencia um claro viés ideológico na investigação. O responsável pelo texto sobre a CUT utiliza aspas quando se refere ao golpe militar. “AVELINO GANZER, membro da Executiva Nacional da CUT e ex-presidente do Sindicato Rural (sic) de Santarém/PA, lembrou as últimas estatísticas das mortes no campo. Destacou que do “golpe militar” até hoje foram registradas 1.630 mortes em conflito por terra e, dos 24 processos concluídos, apenas três mandantes foram condenados.” O relatório traz ainda parte do discurso de Ganzer. “Dramaticamente, nos últimos cinco anos, 53 dirigentes foram mortos em aproximadamente 687 conflitos, finalizou”, ressalta o araponga.
O documento informa que o relatório deve ser repassado para a Comissão Naval, o IV Comar (Comando Aéreo Regional), a Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo. No informe consta ainda que essas informações partiram do 4º BIB (Batalhão de Infantaria Blindado) do Exército. A difusão anterior também é informada. Foi feita pelo Comando Militar do Sudeste, órgão que substituiu, no período democrático, o II Exército ao qual estava subordinado o DOI-Codi
Já a Marinha em seu informe 0130/20/1991, de 25 de setembro de 1991, discorre sobre o Suplemento nº 28 do Departamento de Estudos Socioeconômicos e Políticos (Desep), da CUT. “O SUPLEMENTO, que tem o apoio da CUT Estadual de São Paulo, reúne textos e análises sobre a conjuntura e as tendências do movimento sindical, tem como objetivo principal a elaboração de análises, estudos e pesquisas para subsidiar a atuação da CUT e para estimular o debate e a crítica sobre a evolução das lutas sindicais”, afirma o texto.
O nome dos membros que compõem a Direção Executiva do Desep, sua coordenação e equipe constam desse informe. À época o Desep era chefiado pelo metalúrgico Oswaldo Bargas, que viria a ocupar o cargo de secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego no primeiro mandato do presidente Lula.
A força naval anexa às informações cópia do Suplemento, para que seja compartilhada com o Comando do 1º Distrito Naval, localizado no Rio de Janeiro, Comando Militar do Sudeste (Exército), IV Comar (Aeronáutica), a Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal no Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Policial Civil de São Paulo, Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Essa investigação, segundo informações contidas no relatório, partiu da Comissão Naval em São Paulo.
O comunicado 008/A-2/IV Comar, de 02 de outubro de 1991, da Aeronáutica trata das teses do 6º Congresso Estadual da CUT São Paulo e da programação do Seminário Internacional sobre Socialismo que aconteceria no Instituto Cajamar, instituição ligada ao Partido dos Trabalhadores. “Remetemos para conhecimento as cópias xerox constantes do anexo.” A origem das informações, segundo o relatório, é da Embraer, a empresa da aeronáutica que fabrica aviões. Assim como o Exército e a Marinha, a Aeronáutica  compartilha suas informações. O Comando Militar do Sudeste, a Comissão Naval em São Paulo, o Departamento da Polícia Federal em São Paulo, a Polícia Militar de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social e o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de São Paulo constam como órgãos para os quais o informe deve ser repassado. Envio de publicações sindicais é o título do comunicado encaminhado pela Aeronáutica.
Os relatórios das três Forças Armadas vêm acompanhados, sempre, por carimbos de confidencial e de fichar e arquivar. O da Aeronáutica tem ainda o carimbo do Ministério da Aeronáutica – IV Comar - 2ª Seção, o da Marinha, o da Comissão Naval em São Paulo; o do Exército apresenta carimbo da 2ª Seção da 2ª Divisão do EMG (Estado Maior Geral). Os documentos do Exército e da Aeronáutica vêm acompanhados ainda por outro carimbo, que informa: “o destinatário é o responsável pela manutenção do sigilo deste documento (art. 12 do RSAS – Dec. 79.099 de 05 JAN 77)”.  Trata-se do Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos fixado durante a ditadura militar.
A atuação da Corrente Sindical Classista (CSC), ligada ao PC do B, também foi monitorada pelo Exército no 4º Congresso Nacional da CUT. “A CORRENTE SINDICAL CLASSISTA (CSC) composta por sindicalistas do PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) participou do IV CONGRESSO DA CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (IV CONCUT), realizado em SÃO PAULO/CAPITAL), no período de 04 a 08 SET 91, com uma delegação de cerca de 213 representantes eleitos em quase todos os estados do País.”
O relato de 30 de setembro de 1991 e que teve origem no Comando Militar do Sudeste, informa ainda que o número de delegados da CSC presentes ao congresso permitiu à entidade se tornar a terceira força na entidade, atrás apenas da Articulação e da CUT pela Base.  “Este fato foi muito comemorado por militantes do Partido como altamente positivo considerando que, a CSC foi fundada a menos de 3 anos e filiou-se à CUT há pouco mais de 1 ano (MAR 90)... Conseguiu, ainda, eleger ALOISIO SÉRGIO ROCHA BARROSO, coordenador nacional da CSC e ANTONIO RENILDO SANTANA DE SOUZA para membros da Direção Nacional da CUT.”
Os militares também se preocupavam em produzir relatórios mensais intitulados Panorama Mensal do Movimento Sindical. Esses relatos faziam uma análise das atividades sindicais que se desenvolviam ao longo do mês. Caros Amigos encontrou dois desses relatórios. Eles não estão com o timbre de nenhuma das Forças Armadas, embora sejam redigidos no mesmo tipo de papel (textura, coloração, tamanho). A primeira e a última página aparecem cortadas, uma tinta preta parecida com a de um pincel atômico esconde provavelmente a origem do material.
 
Partidos Políticos
Além da CUT, os documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que o Exército também monitorou o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B).  A Convergência Socialista, organização trotskista que deu origem ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), em 1994, também foi investigada.
No caso do PT, os encontros municipais e zonais do partido e o encontro de seus vereadores constam dos relatórios de monitoramento do Exército. O informe 681 – D.6/E.250/91, de 30 de setembro de 1991, trata do encontro dos parlamentares. “O referido encontro teve como principal meta a preparação dos edis petistas para as discussões do plano diretor e da política orçamentária dos respectivos municípios, segundo as diretrizes do partido. Os políticos petistas também debateram sobre o papel do PT na luta institucional, assim como o posicionamento do partido frente ao parlamento”, enfatiza o texto.
O relatório 00683 – D.6/e.250/91, de 30 de setembro de 1991, sobre os encontros do partido destaca que “o principal objetivo dos eventos visa propiciar aos Diretórios Municipais e Zonais, a escolha dos delegados e observadores, assim como a discussão dos participantes dos temas que serão debatidos no Congresso petista, previsto para o período de 27 NOV à (sic) 01 DEZ 91, nas dependências do PAVILHÃO VERA CRUZ, no município de SÃO BERNARDO/ SP”.
Ambos os documentos são datados de 30 de setembro de 1991 e têm como origem o Comando Militar do Sudeste. A ordem é para que as informações sejam repassadas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo.
Um ciclo de debates promovido pelo PC do B sobre problemas do socialismo e a situação mundial também foi monitorado pelo Comando Militar do Sudeste. O informe 00678/B91-E.250, de 26 de setembro de 1991, explica que “o PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) objetivando aprofundar a discussão sobre os temas relevantes da Tese inicial para o seu 8º CONGRESSO NACIONAL, previsto para JAN 92, promoveu e realizará um CICLO DE DEBATES no período de 05 SET A 24 out 91, todas as quintas-feiras, no salão PEDROSO HORA da CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO.  Os debates terão como tema básico “PROBLEMAS DO SOCIALISMO E SITUAÇÃO MUNDIAL”.  O agente fornece os nomes dos debatedores e a programação do ciclo organizado pelos comunistas.
O documento deve ser difundido para os mesmos órgãos que os indicados para os informes relativos ao PT. Tanto os documentos referentes ao PT quanto os do PC do B possuem carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste.
O informe de 19 de novembro de 1991 sobre a Convergência Socialista é o único em que não aparece como origem o Comando Militar do Sudeste. No espaço reservado a essa identificação consta a palavra Lotus, provavelmente o codinome do agente que acompanhou a reunião do Comitê Central da organização, que ocorreu em São Paulo nos dias 15, 16 e 17 de novembro. A Convergência era à época uma tendência interna do PT.
O relato de sete páginas é rico em detalhes, afirma, por exemplo, que a corrente política pretendia formar a Frente Única Revolucionária. “Foi apresentado um informe sobre os grupos com os quais a organização vem mantendo contatos e reuniões objetivando a formação da Frente Única Revolucionária (FUR), parte de sua tática de organização de um novo partido”. Além dos tradicionais carimbos de confidencial e de fichar e arquivar aparece escrito à mão a tipologia em que o documento deveria ser catalogado: Frente Única Revolucionária.
Segundo o espião, a Convergência Socialista mantinha conversações com o Partido da Libertação Proletária (PLP) para a formação do novo partido. O texto revela que a Convergência queria manter o assunto em sigilo porque a discussão ainda era interna e, portanto, deveria ser mantida preferencialmente na cúpula das duas organizações.
Lotus ressalta que “foi ainda apresentado um relatório sobre as reuniões realizadas com outros grupos”. Os nomes dos dirigentes dos grupos com os quais a Convergência estaria conversando, para a consolidação da FUR aparecem acompanhados pelas siglas DQJD ou SDQ. Caros Amigos consultou várias pessoas, inclusive militares perseguidos pela ditadura para saber o que as siglas significam, mas ninguém soube responder.
 
Forças Armadas
A reportagem entrou em contato com os comandantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica, para que se manifestassem a respeito do monitoramento realizado na década de 90 pelas respectivas Forças, mas nenhum deles aceitou conversar com Caros Amigos.
Em nota, o Centro de Comunicação Social da Aeronáutica reconheceu que a instituição faz o monitoramento e compartilha as informações com os demais órgãos. O texto enviado pela comunicação da Aeronáutica afirma, ainda, que esse compartilhamento é componente doutrinário dos órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência.
“O Centro de Comunicação Social da Aeronáutica informa que o comunicado nº. 008/A-2/IV COMAR, de 02 de outubro de 1991, é oriundo da 2º Seção do IV Comando Aéreo Regional, que constituía, à época, o elo sistêmico da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal.
Assim como em 1991 o compartilhamento de informações faz parte, doutrinariamente, do cotidiano dos órgãos que compõem o atual Sistema Brasileiro de Inteligência.
Cabe destacar que eventos de qualquer natureza, envolvendo aglomerações urbanas, são normalmente acompanhados por órgãos de segurança civis e/ou militares.”
A nota enviada pela Marinha é assinada pelo contra-almirante Paulo Mauricio Farias Alves. O militar informa que o órgão não se posicionará a respeito. “Em procedimento investigatório realizado, não foi encontrado o documento referenciado em seu pedido. Em decorrência dessa inexistência, não é possível responder os dados requeridos.”
A assessoria de comunicação do Exército também não respondeu aos questionamentos. “Sobre um pedido de entrevista com o Comandante do Exército, a respeito de documentos sigilosos, o Centro de Comunicação Social do Exército informa o que se segue: o Comandante do Exército não concederá a entrevista solicitada”, frisa a nota encaminhada.
Caros Amigos também procurou o Ministério da Defesa para que o ministro Nelson Jobim se posicionasse sobre a espionagem realizada pelas três Forças Armadas, mas a assessoria de imprensa do Ministério informou que ele não se pronunciaria sobre essa questão.
 
Os investigados
Para o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos, o Estado brasileiro precisa avançar muito para que a sociedade se torne realmente democrática. “Mesmo após a redemocratização do país há um conjunto de documentos que demonstram que parte dessa estrutura de perseguição e monitoramento continuou. É um absurdo. Deveria ter sido enterrado com o fim da ditadura. Espero que, hoje, isso não esteja acontecendo”, critica.
O sindicalista explica que a década de 90 foi marcada pela tentativa de criminalização dos movimentos sociais e do movimento sindical, em particular. “Não chega a causar surpresa”, afirma ao se referir ao monitoramento que a CUT sofreu por parte das três Forças Armadas. “Sempre viram o movimento sindical como uma possibilidade de perda do controle.”
A deputada federal Iriny Lopes (PT-ES) quer a punição dos responsáveis pelo monitoramento praticado pelas Forças Armadas. “É um ato de violação de direitos, uma violação à Constituição, um desrespeito ao Estado de direito. Quem dirigiu, quem autorizou, quem conduziu essas operações cometeu um ato ilegal, inconstitucional. Os responsáveis devem ser exemplarmente punidos, para que isso não se repita.”
Iriny, que integra a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, destaca que esse tipo de ação de espionagem foi feita ao arrepio da lei.  “Faz parte de um pensamento atrasado e policialesco. Demonstra que parcelas das Forças Armadas e do sistema de segurança mantiveram a mesma visão do tempo da ditadura. Revela uma arbitrariedade, uma flagrante inconstitucionalidade, uma flagrante ilegalidade. É um absurdo. Repudio veemente um comportamento dessa natureza”, frisa a petista.
A parlamentar alerta que aqueles que tiveram sua privacidade devassada podem acionar o Estado. “Eles (militares) monitoraram ilegalmente, catalogaram, perseguiram ideologicamente. A legislação permite que as pessoas que foram violadas tomem medidas legais para a reparação desse tipo de ilegalidade.”
O monitoramento dos comunistas pelas Forças Armadas não causa espanto no presidente do PC do B, Renato Rabelo. Mas o dirigente se surpreende, no entanto, com o período em que isso ocorreu.  “Mesmo com o fim do regime militar, as Forças Armadas mantiveram o serviço de inteligência voltado a vigiar e acompanhar os movimentos sociais. Isso para mim não é novidade. Mas a gente não sabia que isso foi feito na década de 90. Pensei que fosse só até ao final da década de 80. No começo dos anos 80 invadiram várias casas, inclusive, a minha, levaram meus livros, documentos”, revela.
O PC do B foi uma das organizações duramente atacadas pelos militares durante a ditadura. O partido teve seu Comitê Central praticamente dizimado no episódio que ficou conhecido como o massacre da Lapa, em 1976, quando os dirigentes Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram fuzilados por militares do Exército e João Baptista Franco Drummond assassinado sob tortura no DOI-Codi paulista. Na primeira metade da década 70, o PC do B já havia sofrido um dos piores golpes impostos pelos militares, quando os guerrilheiros que atuavam no Araguaia foram executados pelas forças da repressão.
Assim como a deputada Iriny, o dirigente comunista enfatiza o fato de os militares realizarem esse tipo de monitoramento à revelia da lei. “As Forças Armadas não têm o preceito constitucional para vigiar o povo. É uma excrescência, um absurdo.” Ele também questiona a envergadura do aparato montado para espionar a esquerda. “Têm uma estrutura enorme para fazer esse trabalho de investigação. Eu não sei como isso vem se desenvolvendo de lá pra cá, se mantém esse tipo de serviço secreto”, questiona.
"Os movimentos sociais e os partidos políticos que não aceitam a ordem vigente são monitorados", afirma o presidente do PSTU e ex-candidato a presidente da República, José Maria de Almeida, o Zé Maria. "A democracia representativa é um mito. O Estado tem lado, é capitalista e monitora qualquer agrupamento que possa vir a representar algum perigo para a manutenção do status quo. Pode ter sido infiltrado ou serviço de escuta", ressalta ao se referir à espionagem que a Convergência sofreu.
As Forças Armadas devem uma satisfação à sociedade brasileira sobre a espionagem praticada, segundo o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abraão. “Isso caracteriza monitoramento ilegal. O monitoramento só pode ocorrer com autorização judicial”, enfatiza Paulo Abraão, que também é advogado.
Para ele, o não afastamento dos agentes, que serviram ao regime militar, de seus cargos após a redemocratização e a ausência de uma profunda reforma nas Forças Armadas permitem que situações como as identificadas pela reportagem da Caros Amigos aconteçam. “Na Argentina houve o afastamento das pessoas que participaram de funções gerenciais durante a ditadura militar, houve um processo de depuração. Aqui isso nunca aconteceu.”
Paulo Abraão questiona o termo “doutrinariamente” utilizado pela Aeronáutica na nota enviada a Caros Amigos. “As palavras têm força, têm um simbolismo muito grande. A que tipo de doutrinamento se refere? Àquele do regime militar que não respeitava os direitos fundamentais?”, indaga.
Curiosamente o Comando da Aeronáutica publicou portaria, no dia 23 de agosto, instituindo uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos Sigilosos do Comando da Aeronáutica. A Comissão está subordinada diretamente ao comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do Ar, Juniti Saito.
O presidente da Comissão de Anistia vê com preocupação o fato de não haver o controle da sociedade civil.  Ele considera estranho também o fato de a portaria se referir à documentação produzida e arquivada pelo Comando da Aeronáutica.  “As Forças Armadas ainda não se submeteram integralmente ao poder civil. Há um ranço ideológico ao direcionar o monitoramento para a esquerda.”
 
Cuba na mira
A Ilha de Fidel sempre provocou calafrios na cervical dos homens de farda que comandaram o Brasil entre 1964 e 1985. O socialismo cubano era visto como elemento desestabilizador da ordem imposta pelos generais. Era visto... é força de expressão. Porque pelo que a reportagem da Caros Amigos apurou, Cuba continuou sendo motivo de preocupação entre os militares, também nos anos 90.
Documentos confidenciais, de setembro de 1991, comprovam que as Forças Armadas acompanharam os passos dos cubanos Roberto Garcia Robaiña, da União da Juventude Comunista (UJC), e Ana Maria Peñon Saez, da Organização Continental Latinoamericana de Estudantes (Oclae), desde o momento em que os dois desembarcaram, em 21 de setembro, no aeroporto internacional de Guarulhos, localizado na Grande São Paulo.
O nível de detalhamento do relatório produzido pelo serviço de espionagem chama a atenção. Descreve em minúcias, horários e locais por onde os dois passaram durante a estadia no país, registra suas intervenções. A documentação que revela o monitoramento dos ativistas apresenta grau de sofisticação superior aos demais relatórios encontrados pela reportagem. A espionagem feita contra os cubanos vem acompanhada, inclusive, por um “álbum” com oito fotografias.
Uma delas chama particularmente à atenção pela forma como foi obtida. Tirada por um agente, provavelmente, escondido no interior de um veículo, Robaiña aparece identificado, com o número 1 escrito à caneta, e Ana Maria, com o número 2. Além dos dois cubanos, uma terceira pessoa, que acompanhava o casal, também aparece na foto e é identificada no relatório. Os três estão na rua e carregam bolsas e pacotes.
Outras duas fotos do “álbum” também surpreendem. Aparentemente foram extraídas de câmeras filmadoras do circuito interno do aeroporto (confira as imagens em www.carosamigos.com.br). Robaiña é identificado em uma delas. Na outra, aparece Cristobal Pupo Telles, descrito pelos militares como membro da Embaixada Cubana.
O documento do serviço de espionagem afirma que Robaiña e Ana Maria deixaram o país, na noite do dia 27 de setembro, na companhia do compatriota Pupo Telles. “Às 22h30, Ana Maria, que portava passaporte diplomático, Pupo Telles e Robaiña embarcaram no vôo 820 Vasp, com destino a Aruba.”
A informação de que Ana Maria viajou com passaporte diplomático demonstra que o serviço de inteligência do Exército contava com apoio de agentes da Polícia Federal no aeroporto. O órgão era o responsável pela fiscalização do documento no momento de embarque dos passageiros com destinos internacionais.
 
Passo a passo
O relatório intitulado: Atividades de Roberto Garcia Robaiña e Ana Maria Peñon Saez é rico em minúcias. O serviço de espionagem se preocupa em fornecer o maior número possível de informações. A descrição dos horários é uma praxe no texto. Logo na abertura do relato, o agente afirma que os dois cubanos chegaram ao Brasil, às 19h45 do dia 21 de setembro, procedentes de Santiago do Chile.
“Na manhã seguinte, Robaiña e Ana Maria seguiram com destino a Santos/SP, onde chegaram às 11h30.” O serviço de espionagem informa que eles se dirigiram a um colégio onde se realizava o 7º Congresso da União Paulista de Estudantes Secundaristas (Upes). O agente infiltrado relata que ao terem os nomes anunciados, no local onde se realizava a plenária dos estudantes, os cubanos foram ovacionados aos gritos de solidariedade a Cuba.
“Dirigindo-se à platéia, Ana Maria agradeceu a acolhida, falou da importância da solidariedade prestada pela juventude brasileira à causa cubana e reafirmou a determinação do povo cubano na manutenção da ‘revolução cubana’ na Ilha. Às 12h30, o grupo deixou a cidade de Santos/SP, retornando para São Paulo.” O relato afirma que à tarde os ativistas visitaram um mutirão de moradias populares em Guaianazes, bairro da periferia da zona leste da capital paulista. O relatório informa, ainda, que à noite “às 21h, embarcaram no aeroporto de Congonhas, com destino ao Rio de Janeiro/RJ, no vôo 401 – TAM”, ressalta o espião.
No dia seguinte, 23 de setembro, o serviço de espionagem continuou seguindo os passos dos dois cubanos, agora no Estado do Rio de Janeiro. Segundo o relato, os ativistas foram ao município de Campos, onde foram recebidos pelo então prefeito Anthony Garotinho. “A Prefeitura de Campos/RJ vem firmando convênios com Havana.”
Às 9h do dia 24 de setembro teriam participado de uma entrevista na sede do jornal O Globo. Uma hora e meia depois participaram de uma audiência e, posteriormente, de um almoço com o então prefeito do Rio, Marcello Alencar. Leonel Brizola, então governador do Estado do Rio, recebeu os cubanos às 15h, em audiência. Às 18h, foram recebidos por Ivo Biasi Barbieri, então reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde também participaram de um debate no auditório 71 da instituição, às 19h. O serviço de espionagem informa que o evento contou com a presença de aproximadamente 300 pessoas.
Parte da intervenção do cubano também é relatada. “Roberto Robaiña iniciou seu discurso expondo as dificuldades pelas quais Cuba vêm passando após o desalinhamento com a URSS e a constante pressão do “imperialismo” norte-americano”, informa o texto do agente. O cubano investigado pelos militares se tornou ministro das Relações Exteriores de Fidel Castro, anos mais tarde.
A sessão solene em homenagem a amizade entre os povos brasileiro e cubano e pelo fim do bloqueio econômico a Cuba, realizada no dia 25 de setembro de 1991, na Câmara Municipal de São Paulo, que teve as presenças de Robaiña e Ana Maria, foi acompanhada de perto pelo Exército. O informe 00688-A/91/E.250, de 30 de setembro de 1991, apresenta carimbos de confidencial e do Comando Militar do Sudeste e traz o nome das pessoas que compuseram a mesa da solenidade, identificadas com as siglas DQJD ou SDQ.  Cinco fotografias registram o evento. Além de Robaiña e Ana Maria, outro identificado é o vereador da capital paulista Jamil Murad (PC do B), à época deputado estadual pelo partido. 
Assim como os demais documentos produzidos pelo Exército, esse também determina que as informações sejam difundidas para o Centro de Informações do Exército, a 11ª Brigada de Infantaria Blindada, 12ª Brigada de Infantaria Motorizada, 2ª Brigada de Artilharia de Costa e Antiaérea, Brigada de Aviação do Exército, Comissão Naval em São Paulo, IV Comar (Comando Aéreo Regional), Polícia Militar de São Paulo, Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo e Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal em São Paulo. A origem do relatório é identificada como Outono, provavelmente o codinome do agente que acompanhou o evento.
 
 
 
Movimentos sociais foram vigiados por infiltrados da Polícia Civil de São Paulo
 
O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, também foi monitorado pelos espiões do órgão que sucedeu o Dops
 
Assim como as três Forças Armadas, o órgão que sucedeu o antigo Dops não abandonou os métodos empregados por seu antecessor. Os agentes da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo continuaram realizando o monitoramento de movimentos sociais na década de 90.
Relatórios encontrados por Caros Amigos no Arquivo Público do Estado de São Paulo revelam que os arapongas acompanharam manifestações, passeatas, assembléias sindicais, encontros de organizações políticas. O novo órgão deu atenção especial ao movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).  O agente responsável pelas duas universidades produzia geralmente três relatórios semanais descrevendo o que lia nos murais das faculdades.  A Associação dos Docentes da USP (Adusp) e o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) também foram monitorados pelo órgão.
Os espiões da Polícia Civil se identificavam em seus relatórios por um código alfa-númerico. Na esmagadora maioria dos casos, os infiltrados se apresentam como Gama e acrescentam um número, que os diferenciava. A reportagem identificou, no entanto, relatórios em que alguns agentes se identificavam como Quebec e Lince.
A reportagem da Caros Amigos localizou o delegado Ayrton Martini, responsável pelo Departamento de Comunicação Social ao qual estava subordinada a Divisão de Informações Sociais, que fazia essa espionagem. Ele negou que o órgão que dirigia realizasse esse tipo de ação. “Não, não, não. No meu tempo não tinha mais isso. Eu acho que deve estar havendo um engano. Não havia mais monitoramento. No tempo do Dops, sim. No meu tempo, não. Foi a re-de-mo-cra-ti-za-ção do país”, afirma cadenciando a palavra.
Hoje, ele está aposentado, mas além de exercer a direção do órgão de monitoramento, Martini conta que também atuou na Corregedoria e no Departamento de Polícia Científica. Caros Amigos também apurou que ele foi secretário de Segurança Pública em Mairiporã, município do interior de São Paulo, na gestão do PFL (Partido da Frente Liberal).
 
De olho na lupa
Os agentes subordinados a Martini monitoraram todo tipo de assembleia ou encontro de trabalhadores: bancários, médicos, aeroviários, lixeiros, aposentados, condutores, frentistas, jornalistas, metalúrgicos etc. etc. etc. Nada escapava da lupa desses agentes. As reuniões de organizações políticas também estiveram no alvo das investigações.
As passeatas do Fora Collor, é claro, também foram monitoradas. Caros Amigos teve acesso a um desses relatórios. Nele, o delegado Cesar Silva de Sousa informa ao delegado responsável pela operação, Enos Beolchi Jr, que a Operação Setembro, como era conhecida a ação, envolveu 33 policiais da DIS, seis da DCC e oito da assistência policial. Ainda de acordo com o relato do delegado, foram utilizadas sete viaturas no evento. “Nossos policiais recolheram vários panfletos durante a manifestação”, ressalta Sousa, que, hoje, é delegado no 14º Distrito Policial, em Pinheiros, zona oeste da capital paulista. O delegado Beolchi Jr., segundo informações da assessoria de imprensa da Delegacia Geral de Polícia, já faleceu.
 
Comunista
O vereador Jamil Murad (PC do B – SP), à época deputado estadual pelo partido, é citado pelo menos em três relatórios de agentes. “Um dos incitadores à massa foi Jamil Murad”, afirmam os agentes Gama 16, 22, 38 e 50, no relatório 498/94, de 7 de dezembro de 1994. O relato descreve o comportamento do parlamentar durante ato contra o leilão de privatização da Embraer, que ocorreu no centro da capital paulista. O serviço de espionagem mandou para o local pelo menos quatro espiões.
Jamil também aparece no relatório 574/93, de 01 de outubro de 1993. Os infiltrados Gama 21 e Gama 29 acompanharam uma manifestação de aposentados no centro de São Paulo. No relatório, eles afirmam que o parlamentar “mencionou o ‘sucateamento’ das empresas estatais pelo governo federal e a intenção de privatização no sistema previdenciário”.
Os mesmos agentes também acompanharam uma passeata organizada pela CUT contra a revisão constitucional, em setembro de 1993. “Notamos a presença de 200 pessoas dentre militantes do Partido dos Trabalhadores, do Partido Comunista do Brasil, entre outros,” destaca o relatório 569/93, de 29 de setembro de 1993, desses agentes. Eles contam que houve distribuição de panfletos e falas contrárias à revisão constitucional e citam Jamil Murad, como um dos oradores.
O parlamentar ficou surpreso ao saber que foi monitorado pelo setor de inteligência do órgão que substituiu o Dops. “Eu não sabia que isso tinha acontecido. Para mim foi uma surpresa”, frisa Jamil Murad. “Aqui não houve um processo de ruptura com o passado, como ocorreu em Portugal após a Revolução dos Cravos. Lá as forças salazaristas foram varridas das instituições. No Brasil houve um longo processo de acomodação”, completa o vereador comunista.
 
Trotskista
As organizações Causa Operária e Convergência Socialista também foram monitoradas pelos espiões na década de 90. Na época, as duas eram tendências internas do PT. Rui Costa Pimenta e Anaí Caproni, que concorreram nas últimas eleições pelo Partido da Causa Operária (PCO) à Presidência da República e ao Governo do Estado de São Paulo, respectivamente, tiveram um curso de formação política da corrente política, que aconteceu em Mairiporã, monitorado.
Pelo menos dois agentes, Gama 23 e Gama 73, acompanharam esse curso. Os relatórios 01/90 e 12/90, ambos de 16 de junho de 1990 fornecem uma riqueza de detalhes sobre essa atividade. Até mesmo o alojamento onde os militantes se acomodaram é citado no texto. “Cada quarto continha de 4 a 6 beliches e um banheiro.” Horários de deslocamento dos dirigentes da organização também são ressaltados. O agente Gama 73 conclui seu relato afirmando que “os endereços dos militantes já foram fornecidos em relatórios anteriores”.
Uma das atividades da Convergência monitoradas chama a atenção. Gama 73, o mesmo agente que acompanhou o curso de formação da Causa Operária vigiou militantes da corrente política que apoiavam chapa oposicionista na eleição do Sindicato dos Metalúrgicos. Relatório sem número, de 22 de março de 1990, informa, por exemplo, que o espião acompanhou as panfletagens nas portas de fábricas desde às 6h15. O infiltrado fornece a placa do veículo em que os ativistas deixaram o local ao término da atividade. “Veraneio verde escura, placa RV 4251 – SP”. Ele também descreve o teor de conversas, além de informar o novo endereço e telefone da Convergência Socialista.
A Delegacia Geral de Polícia não quis comentar o assunto. Em nota, a assessoria de imprensa do órgão informou que “as questões referentes aos procedimentos devem ser feitas diretamente aos policiais que integravam a Polícia Civil de São Paulo na época em que os fatos teriam ocorrido”. A instituição nega que esse tipo de ação seja desenvolvido hoje. “A DGP esclarece também que todos os levantamentos e/ou monitoramentos, atualmente realizados pela entidade, têm natureza criminal. Ou seja, são iniciados a partir de algo que indique a existência de um crime”, diz a nota.
 
Lúcia Rodrigues é jornalista.